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BERNARDO CARVALHO
Ninguém é inocente
"Platonov", peça escrita por Tchekhov em 1878, já anunciava a desilusão dos dias atuais
TCHEKHOV escreveu "Platonov" (ou "Peça sem Nome",
como é conhecida no repertório do teatro Mali, de São Petersburgo, dirigido por Lev Dodin) em 1878,
quando tinha apenas 18 anos e estudava no liceu de Taganrog, no sul da
Rússia. Foi deixado para trás pela família (que partiu para Moscou depois da falência do pai), para terminar os estudos. Numa carta datada
do mesmo ano, o irmão mais velho
critica o texto e se refere a ele por um
neologismo (possivelmente o título
original da peça) que quer dizer algo
como "a ausência dos pais". Tudo
em "Platonov" se resume à perda e
ao fracasso. O manuscrito, dedicado
à atriz Maria Nicoláievna Ermolova,
e por ela rejeitado, só foi descoberto
em 1920. Publicado três anos mais
tarde, o texto foi considerado impróprio para a encenação, por ser incoerente, caótico e, sobretudo, muito longo.
Ainda hoje, no teatro Mali, quando as luzes se acendem, no intervalo,
e o público ovaciona os atores ausentes do palco, depois de quase
duas horas de espetáculo, alguns espectadores desavisados (além dos
que simplesmente não podem suportar mais duas horas de uma peça
que gira em torno do vazio) se levantam, pegam seus casacos e vão embora, intrigados talvez com a idiossincrasia (ou a modernidade) de intérpretes que não voltam para agradecer os aplausos da platéia.
À parte alguns efeitos cênicos (o
palco está separado do público por
uma piscina, que representa um rio,
diante de uma propriedade rural, e
na qual os atores se jogam, vestidos
ou não, ao longo da peça), não há nada especialmente moderno ou inovador na montagem de Lev Dodin.
Ao contrário, a encenação e a interpretação têm um ar ligeiramente ultrapassado, que alguns espectadores
mais radicais podem considerar tolo
ou insípido, mas que garante grande
parte do charme e da nostalgia. A
montagem, criada há dez anos, hoje
faz parte do repertório do teatro
Mali. É apresentada em alternância
com a mais recente encenação do diretor, a adaptação do romance caudaloso de Vassili Grossman, "Vida e
Destino", por muito tempo proibido
pelo regime soviético.
Sendo um texto de juventude,
muito do que aparece em germe em
"Platonov" anuncia o que voltará
mais tarde, nas peças maduras de
Tchekhov, como uma das características mais marcantes e inovadoras do dramaturgo. "A Gaivota" foi
vaiada na estréia, no teatro Alexandrinski, de São Petersburgo, porque
nada acontecia em cena. "Platonov"
ainda se ergue sobre um modelo de
melodrama. Mas um melodrama no
qual a ação revela apenas a incoerência e o vazio de tudo. Se acontece
alguma coisa, é só para tornar ainda
mais ostensiva a ausência de acontecimentos, o tédio e a derrocada de
todas as promessas.
À peça não falta apenas um título,
mas um personagem principal. Mais
do que herói ou anti-herói, Platonov
é um agente catalisador da falta que
está no ar, revelador de uma época
de incertezas e desilusões. É o herói
onde já não pode haver nenhum. Ao
mesmo tempo, a peça não pode existir sem ele. Começa pouco antes de
ele entrar em cena (reaparece casado, depois de anos, para rever seus
amores e amizades de juventude, na
propriedade rural de uma senhora
falida) e termina com a sua morte.
Todos amam Platonov (ou a lembrança do que ele foi na juventude) e
ele ama todos, mas seu fracasso (o
jovem rebelde romântico foi reduzido a professor rural, casado com a
mais desinteressante das mulheres)
limita sua ação à sedução vazia e ao
engano. Na falta das velhas certezas
e promessas, convertidas em ilusão,
todos querem se deixar seduzir e enganar por Platonov, pelo sonho que
um dia ele representou e do qual
agora não é mais do que uma paródia. É como se a morte conspirasse
por trás de um mundo de exaltações,
desejos e alegrias fugazes.
É claro que esse tempo de desilusão pode também ser o nosso. Mas
há um aspecto especificamente russo. Uma jovem que encontrei em
São Petersburgo, e que já tinha descido aos infernos nos seus 30 e poucos anos, me corrigiu quando falei
de um mundo terrível: "O mundo
não é terrível. É o que é. Já está na
hora de você perder um pouco da
sua inocência". Realmente, basta assistir ao filme mais recente de Sokurov ("Alexandra", exibido no Festival de Cannes e atualmente em cartaz em Paris, sobre uma avó que vai
visitar o neto, soldado russo na
Tchetchênia) para entender que,
talvez em qualquer lugar, mas na
Rússia com certeza, não há inocência possível. E esse é um mundo que
Tchekhov já anunciava na sua primeira peça "incoerente e caótica" de
juventude.
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