São Paulo, sexta-feira, 09 de outubro de 2009

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ANÁLISE

Comendo pelas beiradas

MARCELO BACKES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Herta Müller é uma grande surpresa. Sempre comendo pelas beiradas no prato bem servido da literatura de língua alemã, que deu ao mundo três nóbeis nos últimos dez anos -além de Müller, Elfriede Jelinek, em 2004, e Günter Grass, em 1999-, a autora se caracteriza pela linguagem poética, pontilhada de metáforas e de tom peculiar. Aproveita bem um alemão às vezes um tanto arcaico -falado pela minoria alemã da Romênia- e o lirismo da locução estranha.
A obra de Müller trata do ser humano abandonado a si mesmo, obrigado a abrir mão de sua pátria, a desconfiar do melhor amigo, a encarar o Estado como inimigo. A autora processa o que viveu e sentiu, e alcança o universal a partir da experiência individual, que sabe importante e significativa; mesmo quando encara o fantástico, o surreal, é porque só ele é capaz de dar conta da realidade.
Ela quebra o silêncio, arranca a mordaça "eterna" imposta pelo sistema totalitário de Ceaucescu, a fim de investigar o significado do estigma, de averiguar em que medida é irreversível a avaria anímica causada pelo tacão de um Estado que invadiu sua casa, sua família, seu ser (quando descobriu que a melhor amiga a espionava).
A escola do medo encarada na infância marcou-a para sempre, assim como o eterno dilema entre ficar e partir, e a dificuldade de chegar quando a fuga se tornou necessária. Espécie de Paul Celan em prosa, ela não tem pruridos diante de si mesma, se indigna poeticamente e mostra confiança quase tocante no vigor da palavra.
"Atemschaukel" (um título intraduzível, que põe a respiração na gangorra), sua obra mais recente, aborda a deportação do poeta dadaísta e tradutor Oskar Pastior, seu conterrâneo, obrigado a encarar a vida num gulag após a Segunda Guerra.
Vigoroso, o romance mostra uma autora no auge de sua produção, e está entre os seis finalistas do Deutscher Buchpreis, que será entregue em breve. Será que a Nobel leva também o Booker Prize dos alemães? No Brasil, temos de fazer de tudo para que Müller não repita o destino de Jelinek -com quem aliás tem muito a ver- e chegue ao leitor brasileiro.

MARCELO BACKES é escritor e tradutor. Traduziu o conto "A Canção de Marchar", de Müller, na coletânea "Escombros e Caprichos" (L&PM)



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