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ANÁLISE
Comendo pelas beiradas
MARCELO BACKES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Herta Müller é uma
grande surpresa. Sempre comendo pelas
beiradas no prato bem servido
da literatura de língua alemã,
que deu ao mundo três nóbeis
nos últimos dez anos -além de
Müller, Elfriede Jelinek, em
2004, e Günter Grass, em
1999-, a autora se caracteriza
pela linguagem poética, pontilhada de metáforas e de tom peculiar. Aproveita bem um alemão às vezes um tanto arcaico
-falado pela minoria alemã da
Romênia- e o lirismo da locução estranha.
A obra de Müller trata do ser
humano abandonado a si mesmo, obrigado a abrir mão de sua
pátria, a desconfiar do melhor
amigo, a encarar o Estado como
inimigo. A autora processa o
que viveu e sentiu, e alcança o
universal a partir da experiência individual, que sabe importante e significativa; mesmo
quando encara o fantástico, o
surreal, é porque só ele é capaz
de dar conta da realidade.
Ela quebra o silêncio, arranca
a mordaça "eterna" imposta
pelo sistema totalitário de
Ceaucescu, a fim de investigar o
significado do estigma, de averiguar em que medida é irreversível a avaria anímica causada
pelo tacão de um Estado que invadiu sua casa, sua família, seu
ser (quando descobriu que a
melhor amiga a espionava).
A escola do medo encarada
na infância marcou-a para
sempre, assim como o eterno
dilema entre ficar e partir, e a
dificuldade de chegar quando a
fuga se tornou necessária. Espécie de Paul Celan em prosa,
ela não tem pruridos diante de
si mesma, se indigna poeticamente e mostra confiança quase tocante no vigor da palavra.
"Atemschaukel" (um título
intraduzível, que põe a respiração na gangorra), sua obra mais
recente, aborda a deportação
do poeta dadaísta e tradutor
Oskar Pastior, seu conterrâneo,
obrigado a encarar a vida num
gulag após a Segunda Guerra.
Vigoroso, o romance mostra
uma autora no auge de sua produção, e está entre os seis finalistas do Deutscher Buchpreis,
que será entregue em breve.
Será que a Nobel leva também o Booker Prize dos alemães? No Brasil, temos de fazer
de tudo para que Müller não repita o destino de Jelinek -com
quem aliás tem muito a ver- e
chegue ao leitor brasileiro.
MARCELO BACKES é escritor e tradutor. Traduziu o conto "A Canção de Marchar", de Müller, na
coletânea "Escombros e Caprichos" (L&PM)
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