São Paulo, sexta, 9 de outubro de 1998

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ANÁLISE
Prêmio merece celebração com ressalva

NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas

A premiação de Saramago merece ser comemorada no universo lusófono - mas com ressalvas.
Comemorada, sim, pois, sendo o primeiro Nobel literário da língua portuguesa, mais do que inscrevê-la no mapa internacional da cultura, ele endossa um interesse e um processo de reconhecimento que, da publicação de vários volumes de Clarisse Lispector pela New Directions, nos EUA, à nova tradução de "Os Lusíadas", que saiu na coleção inglesa Oxford Classics, vêm se desenvolvendo e confirmando há uma ou duas décadas.
Uma literatura só existe de fato hoje em dia se puder ser lida em inglês, francês ou, pelo menos, em espanhol. O Nobel deste ano, dizendo respeito não só ao autor premiado, como também aos seus compatriotas nacionais ou linguísticos, significa simplesmente, em termos pragmáticos, tanto que, em Berkeley, Nancy, Oxford ou Salamanca, mais alunos se inscreverão nos cursos de língua e literatura portuguesa. Editoras como Simon & Schuster, Viking Penguin ou Gallimard contratarão mais leitores para vasculhar o que se tem escrito na "última flor do Lácio".
As ressalvas, no entanto, dizem respeito tanto ao tipo de escritor quanto ao de literatura que acabam de ser laureados. Saramago escreve, sem dúvida, uma prosa fluente, elegante. E esse é um de seus maiores defeitos, pois não faltam em nosso idioma exemplos de uma escrita assim, escrita à qual, com elegância de uma luva, pode-se aplicar um adjetivo: acadêmica.
Ele é um escritor cheio de opiniões (duas ou três em cada frase) e o problema disso não se encontra apenas no tédio resultante (sobretudo para os leitores que preferem tirar suas próprias conclusões), mas no fato de que a maioria de suas opiniões é ruim. Saramago é um stalinista irredento e consagrá-lo dessa forma é obviamente diferente de celebrar um neonazista. Mas só um pouco. Seja pelo seu estilo ou por sua visão de mundo, ele representa, no geral e frente ao Brasil em particular, a velha arrogância peninsular (compartilhada, em face da América Hispânica, por muitos espanhóis), segundo a qual os portugueses, embora representem cerca de 5% dos falantes da língua homônima, são seus únicos proprietários legítimos. Assim como, politicamente, ele não defende valores democráticos, Saramago tampouco se vê como o usuário de uma língua multicultural, multirracional e multinacional. Que ele viesse desempenhando o papel de apologeta de um pequeno país ilhado, feito uma jangada de pedra, nos arredores da Comunidade Européia e de uma ideologia defunta, era, se tanto, contratempo para ele e seus admiradores. A partir de ontem, isso tornou-se questão séria a ser considerada no âmbito de toda uma língua: a nossa.



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