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RODAPÉ
Traduções galegas são presentes para leitores do português
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
As melhores piadas de português são aquelas que, avessas a qualquer intenção ofensiva,
tomam como ponto de partida as
diferenças cada vez maiores que
há entre as duas grandes variantes
da língua que, em ambos os lados
do mar oceano, ainda leva o mesmo nome.
Numa das mais famosas, o taxista lisboeta, ouvindo a conversa
de seus passageiros brasileiros,
não resiste e pergunta : "Que língua é esta que estão a falar, que
não sei qual é, mas entendo perfeitamente?".
Pois bem, que língua, então, é a
do seguinte trecho?
"Quen, se eu clamase, me escoitaria dende os ordes/ anxélicos? e
ainda mesmo, se un deles/ me tomase supetamente no seu corazón: eu esmorecería/ polo seu
mais forte existir. Pois o belo non
é mais/ que o comezo do terrible,
que ainda podemos soportar,/ e
admirámolo tanto na medida en
que, tranquilo,/ desdeña destruirnos. Todo anxo é terrible."
Assim começa a primeira das
"Elexías de Duino", de Rainer
Maria Rilke, em tradução de Jaime Santoro para o galego (Edicións Espiral Maior, A Coruña,
1995).
E eis aqui o primeiro quarteto
do soneto inicial da "Vida Nova"
de Dante Alighieri na tradução de
Darío Xohán Cabana (Espiral
Maior, 1994) : "A calquera alma
presa e xentil cór/ ante quen chegue o meu dicir presente,/ pra que
me escriba coa opinión que sente,/ no seu señor saúde, esto é, en
Amor".
Jorge Luis Borges, em algum ensaio ou entrevista, já havia dito
que o português é o latim do século 20, constatação esta que vale,
sem dúvida, para todas as línguas
da família, tornando-as, de certo
modo, uma única, se bem que falada e escrita aqui e ali com inflexões distintas. Duas variantes
idiomáticas são às vezes chamadas de dialetos da mesma língua e
outras vezes, de línguas diferentes, embora a decisão decorra frequentemente da política e da geografia. Como se sabe, uma língua
nada mais é que um dialeto munido de um exército.
Com o intuito de coibir as tendências centrífugas bem como o
espírito autônomo de cada região
de um país que desejava apresentar como mais unitário do que de
fato era, Francisco Franco Bahamonde fez o possível para impor
aos espanhóis o uso exclusivo do
castelhano. Após a morte, em
1975, do "Caudillo de España por
la Grácia de Diós", a primeira das
línguas reprimidas a se recuperar
foi o catalão. Como uma das regiões mais ricas do país, a Catalunha desenvolveu um mercado
editorial que pôs em circulação
tanto sua própria literatura quanto, em traduções não raro superiores às castelhanas, os clássicos
universais.
Mas, no extremo oposto da península, ao norte de Portugal, a
Galiza, tradicionalmente pobre,
ficou para trás. Ainda no princípio dos anos 90 procurar versões
galegas de Dante, Goethe ou Baudelaire nas livrarias de Santiago
de Compostela era uma experiência frustrante.
Desde então, porém, o quadro
mudou e muitas da versões, por
exemplo, de poetas como Novalis
ou Paul Valéry nada ficam a dever
seja às portuguesas, seja às brasileiras, pois uma das estratégias às
quais idiomas ditos "menores" e
ameaçados de extinção recorrem
para sobreviver é a ampliação e
multiplicação de sua literatura
através da atividade tradutória.
Graças a isso, os falantes de português estão sendo presenteados
com todo um acervo literário que,
mesmo se não souberem qual é,
podem ler e entender perfeitamente.
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