São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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RODAPÉ

Traduções galegas são presentes para leitores do português

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

As melhores piadas de português são aquelas que, avessas a qualquer intenção ofensiva, tomam como ponto de partida as diferenças cada vez maiores que há entre as duas grandes variantes da língua que, em ambos os lados do mar oceano, ainda leva o mesmo nome.
Numa das mais famosas, o taxista lisboeta, ouvindo a conversa de seus passageiros brasileiros, não resiste e pergunta : "Que língua é esta que estão a falar, que não sei qual é, mas entendo perfeitamente?".
Pois bem, que língua, então, é a do seguinte trecho?
"Quen, se eu clamase, me escoitaria dende os ordes/ anxélicos? e ainda mesmo, se un deles/ me tomase supetamente no seu corazón: eu esmorecería/ polo seu mais forte existir. Pois o belo non é mais/ que o comezo do terrible, que ainda podemos soportar,/ e admirámolo tanto na medida en que, tranquilo,/ desdeña destruirnos. Todo anxo é terrible."
Assim começa a primeira das "Elexías de Duino", de Rainer Maria Rilke, em tradução de Jaime Santoro para o galego (Edicións Espiral Maior, A Coruña, 1995).
E eis aqui o primeiro quarteto do soneto inicial da "Vida Nova" de Dante Alighieri na tradução de Darío Xohán Cabana (Espiral Maior, 1994) : "A calquera alma presa e xentil cór/ ante quen chegue o meu dicir presente,/ pra que me escriba coa opinión que sente,/ no seu señor saúde, esto é, en Amor".
Jorge Luis Borges, em algum ensaio ou entrevista, já havia dito que o português é o latim do século 20, constatação esta que vale, sem dúvida, para todas as línguas da família, tornando-as, de certo modo, uma única, se bem que falada e escrita aqui e ali com inflexões distintas. Duas variantes idiomáticas são às vezes chamadas de dialetos da mesma língua e outras vezes, de línguas diferentes, embora a decisão decorra frequentemente da política e da geografia. Como se sabe, uma língua nada mais é que um dialeto munido de um exército.
Com o intuito de coibir as tendências centrífugas bem como o espírito autônomo de cada região de um país que desejava apresentar como mais unitário do que de fato era, Francisco Franco Bahamonde fez o possível para impor aos espanhóis o uso exclusivo do castelhano. Após a morte, em 1975, do "Caudillo de España por la Grácia de Diós", a primeira das línguas reprimidas a se recuperar foi o catalão. Como uma das regiões mais ricas do país, a Catalunha desenvolveu um mercado editorial que pôs em circulação tanto sua própria literatura quanto, em traduções não raro superiores às castelhanas, os clássicos universais.
Mas, no extremo oposto da península, ao norte de Portugal, a Galiza, tradicionalmente pobre, ficou para trás. Ainda no princípio dos anos 90 procurar versões galegas de Dante, Goethe ou Baudelaire nas livrarias de Santiago de Compostela era uma experiência frustrante.
Desde então, porém, o quadro mudou e muitas da versões, por exemplo, de poetas como Novalis ou Paul Valéry nada ficam a dever seja às portuguesas, seja às brasileiras, pois uma das estratégias às quais idiomas ditos "menores" e ameaçados de extinção recorrem para sobreviver é a ampliação e multiplicação de sua literatura através da atividade tradutória. Graças a isso, os falantes de português estão sendo presenteados com todo um acervo literário que, mesmo se não souberem qual é, podem ler e entender perfeitamente.


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