|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
WALTER SALLES
Três encontros
Cinco semanas na estrada. À medida que nos distanciamos da Argentina cosmopolita que se espelha na Europa,
vamos descobrindo personagens
que pertencem a uma geografia
humana intrinsecamente latino-americana. Aqui, alguns deles.
Don Tito Lagos parece um personagem de Guimarães Rosa.
Mora numa pequena casa em
Cuyin Manzano, na Patagônia
argentina. No curral em que trabalha, um cão devora os restos da
cabeça de uma vaca. A cena,
aqui, não choca. Faz parte da lógica de sobrevivência em um clima rude. "Já nascemos com nosso
destino", sentencia Don Tito.
Seu avô partiu da cidade de
Mendoza para o sul do país atrás
do ouro e da prata. Chegou tarde
à Patagônia. O território já havia
sido ocupado; os índios, massacrados. Hoje, Don Tito é empregado de uma fazenda cujos donos
moram em Buenos Aires.
Ele nos leva a cavalo até o Cerro
Negro, a quase 2.000 metros de altitude. Dos dois lados da montanha, a queda é livre. A aventura
vale a pena. No topo do penhasco,
há um dos maiores refúgios de
condores da América Latina. Os
animais planam a poucos metros
das nossas cabeças. A cena é tão
impactante que esquecemos o frio
intenso.
Na volta da expedição, Don Tito nos fala de sua família. É um
súbito retorno à realidade. Don
Tito teve quatro filhos, mas perdeu uma menina de 15 anos em
um acidente de automóvel. Entrou na Justiça, ganhou a causa,
mas a seguradora se recusa a pagar o que lhe deve. "Assim vai a
Argentina", diz.
Don Alfredo Passo trabalha em
barcos no lago Nahuel Huapi, um
dos sete lagos patagônios. Chegou
ali em 1958 e não pretende mais
voltar para Buenos Aires.
Don Alfredo veio participar do
filme que estamos fazendo. Em
uma cena, pilota uma balsa que
transporta dois jovens viajantes e
uma velha moto da Argentina até
o Chile. A neblina e a chuva tomam contam de Porto Blest, onde
filmamos. Como em "Estranhos
no Paraíso", de Jim Jarmusch, pode-se apenas adivinhar a outra
margem do lago.
Ao final do dia, Don Alfredo nos
conta algo surpreendente. Quis
participar da filmagem por uma
razão concreta. Conheceu Ernesto Guevara, cuja primeira viagem
através da América Latina é a
fonte de inspiração do filme que
estamos fazendo. Em 1953, viajou
com ele de ônibus de La Paz até
Copacabana, na Bolívia, e de lá
até Puno, Cuzco e Lima, no Peru.
Em Lima, Don Alfredo reencontrou seu pai, que estava vivendo
na capital peruana. Ernesto Guevara seguiu para Guayaquil. Encontraram-se pela última vez em
1960, em Montevidéu, quando Ernesto já tinha se transformado no
comandante Che Guevara.
Que lembrança o senhor tem de
Guevara, pergunta um membro
de nossa equipe. "A de um idealista. O idealista por excelência",
responde Don Alfredo, os olhos
mareados.
Aconteceu ao cair da tarde, na
região dos pampas. Uma neblina
e uma chuva fina se abateram subitamente sobre a planície. Não
se via um metro à frente do nariz.
Foi quando ouvimos o trote seco
de um cavalo. Um "gaucho" se
materializou pouco a pouco. Seu
nome era Don Carlos. Não sabemos de onde vinha nem para onde ia.
Um pequeno cão negro o acompanhava. Don Carlos se foi depois
de alguns minutos. O cão ficou
mais alguns instantes conosco.
Depois partiu, tragado pela neblina.
O silêncio tomou conta da equipe de filmagem. Uma viagem
também é feita de desaparecimentos, dizia o escritor francês
Paul Nizan.
Texto Anterior: José Simão Próximo Texto: Panorâmica - Cinema: Coutinho faz bate-papo sobre novo longa Índice
|