São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

WALTER SALLES

Três encontros

Cinco semanas na estrada. À medida que nos distanciamos da Argentina cosmopolita que se espelha na Europa, vamos descobrindo personagens que pertencem a uma geografia humana intrinsecamente latino-americana. Aqui, alguns deles.
 
Don Tito Lagos parece um personagem de Guimarães Rosa. Mora numa pequena casa em Cuyin Manzano, na Patagônia argentina. No curral em que trabalha, um cão devora os restos da cabeça de uma vaca. A cena, aqui, não choca. Faz parte da lógica de sobrevivência em um clima rude. "Já nascemos com nosso destino", sentencia Don Tito.
Seu avô partiu da cidade de Mendoza para o sul do país atrás do ouro e da prata. Chegou tarde à Patagônia. O território já havia sido ocupado; os índios, massacrados. Hoje, Don Tito é empregado de uma fazenda cujos donos moram em Buenos Aires.
Ele nos leva a cavalo até o Cerro Negro, a quase 2.000 metros de altitude. Dos dois lados da montanha, a queda é livre. A aventura vale a pena. No topo do penhasco, há um dos maiores refúgios de condores da América Latina. Os animais planam a poucos metros das nossas cabeças. A cena é tão impactante que esquecemos o frio intenso.
Na volta da expedição, Don Tito nos fala de sua família. É um súbito retorno à realidade. Don Tito teve quatro filhos, mas perdeu uma menina de 15 anos em um acidente de automóvel. Entrou na Justiça, ganhou a causa, mas a seguradora se recusa a pagar o que lhe deve. "Assim vai a Argentina", diz.
 
Don Alfredo Passo trabalha em barcos no lago Nahuel Huapi, um dos sete lagos patagônios. Chegou ali em 1958 e não pretende mais voltar para Buenos Aires.
Don Alfredo veio participar do filme que estamos fazendo. Em uma cena, pilota uma balsa que transporta dois jovens viajantes e uma velha moto da Argentina até o Chile. A neblina e a chuva tomam contam de Porto Blest, onde filmamos. Como em "Estranhos no Paraíso", de Jim Jarmusch, pode-se apenas adivinhar a outra margem do lago.
Ao final do dia, Don Alfredo nos conta algo surpreendente. Quis participar da filmagem por uma razão concreta. Conheceu Ernesto Guevara, cuja primeira viagem através da América Latina é a fonte de inspiração do filme que estamos fazendo. Em 1953, viajou com ele de ônibus de La Paz até Copacabana, na Bolívia, e de lá até Puno, Cuzco e Lima, no Peru.
Em Lima, Don Alfredo reencontrou seu pai, que estava vivendo na capital peruana. Ernesto Guevara seguiu para Guayaquil. Encontraram-se pela última vez em 1960, em Montevidéu, quando Ernesto já tinha se transformado no comandante Che Guevara.
Que lembrança o senhor tem de Guevara, pergunta um membro de nossa equipe. "A de um idealista. O idealista por excelência", responde Don Alfredo, os olhos mareados.
 
Aconteceu ao cair da tarde, na região dos pampas. Uma neblina e uma chuva fina se abateram subitamente sobre a planície. Não se via um metro à frente do nariz. Foi quando ouvimos o trote seco de um cavalo. Um "gaucho" se materializou pouco a pouco. Seu nome era Don Carlos. Não sabemos de onde vinha nem para onde ia.
Um pequeno cão negro o acompanhava. Don Carlos se foi depois de alguns minutos. O cão ficou mais alguns instantes conosco. Depois partiu, tragado pela neblina.
O silêncio tomou conta da equipe de filmagem. Uma viagem também é feita de desaparecimentos, dizia o escritor francês Paul Nizan.


Texto Anterior: José Simão
Próximo Texto: Panorâmica - Cinema: Coutinho faz bate-papo sobre novo longa
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.