São Paulo, sábado, 10 de janeiro de 1998.




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O intelectual, de Zola a Brecht

da Reportagem Local

Há 100 anos a palavra não existia. Acreditam então os franceses que, ainda mesmo se pudesse ser encontrada no dicionário Larousse antes de 1898, era mais um adjetivo (depreciativo) que um substantivo.
É o romancista Émile Zola que muda o rumo do conceito e, com suas ações, acompanhado por outros, forma o grupo -ou a matilha, na visão de seus opositores- composto por escritores, pintores e atores que se tomam como representantes da Justiça no mundo. Nasce, com Zola e o caso Dreyfus, o "intelectual", o ser combativo que acredita em causas.
A partir do caso (a defesa de um oficial acusado de traição) a história prossegue, e o grupo se divide. Já não há mais uma motivação comum, nem apenas a França, pois, com os anos, a própria causa se torna uma pátria.
O dramaturgo alemão Bertolt Brecht -figura exemplar desse intelectual no século 20- nasce no ano em que Zola lança seu "J'Accuse" e seguirá um rumo traçado no momento. Falará em público, montará peças e escreverá canções em nome de suas crenças sem deixar de ser o que sempre foi desde o início: o artista. Comemora-se, portanto, o centenário de uma idéia lançada e de um dos mais radicais homens que a alcançaram.

MARIANE COMPARATO
de Paris

Há exatos cem anos, dava-se o julgamento que motivou o texto que mudaria a história da imprensa e a de um dos maiores erros judiciais de que se tem notícia.
A absolvição do capitão Ferdinand Esterhazy, em julgamento que aconteceu nos dias 10 e 11 de janeiro de 1898, levou o escritor Émile Zola a publicar no jornal "L'Aurore" o "J'Accuse...!" (Eu Acuso), defesa apaixonada de outro capitão, o judeu Richard Dreyfus, condenado pelos crimes de Esterhazy, que entregara segredos militares da França à Alemanha.
Aos 58 anos, Zola pôs em risco sua reputação de grande escritor, foi condenado a um ano de prisão e teve de se refugiar na Inglaterra para não cumprir a pena. Sua opção "pela verdade e pela justiça" empolgou o mundo.
O professor da Universidade Columbia (NY), Henri Mitterand, também professor emérito da Universidade de Paris 8 (Sorbonne), é autor dos livros "Zola - La Vérité en Marche" (Zola - a Verdade em Andamento) e "Zola Journaliste" (Zola Jornalista), entre outros.
Ele falou à Folha sobre a importância do gesto de Zola. Leia a seguir trechos da entrevista de Mitterand, que preside a Sociedade Literária dos Amigos de Émile Zola.

Folha - Pode-se medir o alcance do manifesto "J'Accuse"?
Henri Mitterand -
Foi considerável por várias razões. Primeiro, porque Zola era o escritor mais conhecido da época. Além disso, o estilo, o título, a publicação na capa do jornal, o tipo de ataque escolhido pelo autor foram singulares. Ele dirigiu a carta diretamente ao presidente da República da época (Félix Faure) e citou os nomes de todas as pessoas envolvidas no caso, inclusive alguns generais.
Era uma provocação nunca vista antes. Zola trancou o governo num dilema: não processar criminalmente e parecer dar razão a ele ou processar e desencadear uma crise na opinião pública. Foi o que aconteceu: a República foi ameaçada. Isso provocou a revisão do processo de Dreyfus, e nada teria acontecido se Zola não se tivesse oferecido à ação penal pública.
Folha - Por que Dreyfus?
Mitterand -
Não se sabe ao certo. Ele era oficial do Estado-Maior, era o único judeu, invejado por ser um politécnico. Tinha família na Alsácia, que na época pertencia à Alemanha. Foi providencial.
Folha - "A Besta Humana", que Zola escreveu anos antes, tem muitas semelhanças com o caso.
Mitterand -
É verdade, é a história de um crime, de uma investigação e da condenação de um inocente no lugar do verdadeiro culpado. Quando Zola começou a se interessar pelo caso Dreyfus, ele reagiu como um romancista.
Folha - Zola então se lançou na história pela Justiça?
Mitterand
- Zola tinha um lado quase anarquista, era uma pessoa que desconfiava, por princípio, do poder. Não foi por ambição nem gosto pelo dinheiro, porque ele perdeu tudo nesse caso. Perdeu um ano da sua vida familiar, nos anos que se seguiram foi ameaçado, injuriado e perdeu dinheiro, porque as vendas caíram.
Folha - Zola é único?
Mitterand -
Zola é o único que mudou a história. Nem mesmo Voltaire, que defendeu perseguidos, conseguiu salvar vidas. Victor Hugo escreveu "Castigos" contra Napoleão Bonaparte 3º, mas o Segundo Império ficou no lugar. Sartre fez barulho, mas não conseguiu desencadear uma revolução.



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