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RODAPÉ
Investigação e invenção
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"A função do escritor está
ligada ao poder de iniciar
os leitores na verdade", diz o narrador de "O Diplomata e o Agente
Funerário". Nada, porém, é mais
enganoso do que tal afirmação
nesse livro que adota a forma do
romance policial para despistar o
leitor.
Seu autor, Jacinto Rego de Almeida, é um português que mora
em Brasília (onde trabalha como
conselheiro econômico da Embaixada de Portugal) e que desertou do exército de seu país durante as guerras coloniais na África,
vivendo no exílio entre 1968 e
1974, quando a Revolução dos
Cravos pôs fim ao regime salazarista.
Esses dados biográficos, somados a seu gosto pelo gênero policial, já haviam resultado em "Crime de Estado" (1999), romance
que se passa num país fictício da
África, mas se inspira no episódio
da morte de um embaixador do
Haiti no Brasil dos anos 70.
Tais elementos seriam suficientes para despertar a curiosidade.
Afinal, a narrativa policial tem
pouca tradição na literatura portuguesa ou mesmo na brasileira
(Rubem Fonseca e Marçal Aquino cortejam o submundo da criminalidade, mas só Luiz Alfredo
Garcia-Roza e Tony Bellotto perseveram no gênero).
De resto, o mundo da diplomacia tem a mesma aura que as sociedades secretas, com códigos e
rituais que só alguém que conhece seus bastidores pode retratar
de modo fidedigno.
Mas se fosse apenas pela trama
policial e pela anatomia desse ambiente fechado, "O Diplomata e o
Agente Funerário" seria só um
bom entretenimento, quando na
verdade seu autor tem intenções
mais ardilosas.
Logo no início do livro, o narrador (um diplomata que trabalhou
no Brasil) fica sabendo da morte
de um agente funerário, envenenado pelo filho em uma pequena
aldeia portuguesa. Como ele conhecera a vítima no Rio de Janeiro, interessa-se pelo caso e descobre que havia uma íntima relação
entre o crime e uma ex-namorada
do suposto assassino, que anos
antes fugira para Angola, de onde
retornou na companhia do marido (traficante de diamantes que
abre um prostíbulo na Espanha).
O que parece inicialmente ser
um desfile de personagens estereotipadas (o rufião em pele de
empresário, investigadores, mulheres fatais) revela-se então uma
parábola da Europa globalizada e
de um país traumatizado pela catástrofe colonial, que mercantiliza
o sexo e a morte -e cujo emblema é o cafetão Adelino Barreiros,
pivô da intriga, que diversifica
seus negócios ao entrar no ramo
das funerárias.
Nesse sentido, o romance está
dentro de uma tradição literária
que, lançando mão do apelo popular dos casos policiais, faz do
crime uma ocasião propícia para
refletir sobre impulsos de destruição e autodestruição -com inocentes que optam por assumir a
culpa de delitos que não cometeram, que preferem viver no mundo organizado da prisão a sucumbir à selvageria da sociedade.
Mas Rego de Almeida procura
ir além do registro psicológico por
meio de um sutil jogo de focos
narrativos: o diplomata que conta
a história está ora no âmbito verossímil de uma personagem que
investiga um assassinato, ora no
papel de um narrador onisciente,
que penetra na mente das outras
personagens, adivinhando seus
pensamentos e ações solitárias.
Com isso, a trama policial se
transforma em parábola da própria literatura. O delito deixa de
ter importância e vem à tona a necessidade que o narrador tem de
se aproximar das ambiguidades
que tornam o universo criminal
tão sedutor. "Ao contrário de
muitos homens, que não têm vida
nenhuma, Adelino vivia mais de
uma ao mesmo tempo", escreve
ele, mas não sabemos até que
ponto as personagens são de fato
consistentes com o realismo da
trama ou se são projeções da
mente do narrador, que assim reproduz o desejo do próprio autor.
Em "O Diplomata e o Agente
Funerário", a investigação se
transforma em invenção e, à parte
uns poucos capítulos metalinguísticos (nem sempre muito harmônicos), Rego de Almeida leva a
narrativa no estilo seco do romance "noir" americano, iniciando seus leitores nas verdades da
ficção.
O Diplomata e o Agente
Funerário
Autor: Jacinto Rego de Almeida
Editora: Geração
Quanto: R$ 29 (188 págs.)
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