São Paulo, sábado, 10 de janeiro de 2004

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RODAPÉ

Investigação e invenção

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"A função do escritor está ligada ao poder de iniciar os leitores na verdade", diz o narrador de "O Diplomata e o Agente Funerário". Nada, porém, é mais enganoso do que tal afirmação nesse livro que adota a forma do romance policial para despistar o leitor.
Seu autor, Jacinto Rego de Almeida, é um português que mora em Brasília (onde trabalha como conselheiro econômico da Embaixada de Portugal) e que desertou do exército de seu país durante as guerras coloniais na África, vivendo no exílio entre 1968 e 1974, quando a Revolução dos Cravos pôs fim ao regime salazarista.
Esses dados biográficos, somados a seu gosto pelo gênero policial, já haviam resultado em "Crime de Estado" (1999), romance que se passa num país fictício da África, mas se inspira no episódio da morte de um embaixador do Haiti no Brasil dos anos 70.
Tais elementos seriam suficientes para despertar a curiosidade. Afinal, a narrativa policial tem pouca tradição na literatura portuguesa ou mesmo na brasileira (Rubem Fonseca e Marçal Aquino cortejam o submundo da criminalidade, mas só Luiz Alfredo Garcia-Roza e Tony Bellotto perseveram no gênero).
De resto, o mundo da diplomacia tem a mesma aura que as sociedades secretas, com códigos e rituais que só alguém que conhece seus bastidores pode retratar de modo fidedigno.
Mas se fosse apenas pela trama policial e pela anatomia desse ambiente fechado, "O Diplomata e o Agente Funerário" seria só um bom entretenimento, quando na verdade seu autor tem intenções mais ardilosas.
Logo no início do livro, o narrador (um diplomata que trabalhou no Brasil) fica sabendo da morte de um agente funerário, envenenado pelo filho em uma pequena aldeia portuguesa. Como ele conhecera a vítima no Rio de Janeiro, interessa-se pelo caso e descobre que havia uma íntima relação entre o crime e uma ex-namorada do suposto assassino, que anos antes fugira para Angola, de onde retornou na companhia do marido (traficante de diamantes que abre um prostíbulo na Espanha).
O que parece inicialmente ser um desfile de personagens estereotipadas (o rufião em pele de empresário, investigadores, mulheres fatais) revela-se então uma parábola da Europa globalizada e de um país traumatizado pela catástrofe colonial, que mercantiliza o sexo e a morte -e cujo emblema é o cafetão Adelino Barreiros, pivô da intriga, que diversifica seus negócios ao entrar no ramo das funerárias.
Nesse sentido, o romance está dentro de uma tradição literária que, lançando mão do apelo popular dos casos policiais, faz do crime uma ocasião propícia para refletir sobre impulsos de destruição e autodestruição -com inocentes que optam por assumir a culpa de delitos que não cometeram, que preferem viver no mundo organizado da prisão a sucumbir à selvageria da sociedade.
Mas Rego de Almeida procura ir além do registro psicológico por meio de um sutil jogo de focos narrativos: o diplomata que conta a história está ora no âmbito verossímil de uma personagem que investiga um assassinato, ora no papel de um narrador onisciente, que penetra na mente das outras personagens, adivinhando seus pensamentos e ações solitárias.
Com isso, a trama policial se transforma em parábola da própria literatura. O delito deixa de ter importância e vem à tona a necessidade que o narrador tem de se aproximar das ambiguidades que tornam o universo criminal tão sedutor. "Ao contrário de muitos homens, que não têm vida nenhuma, Adelino vivia mais de uma ao mesmo tempo", escreve ele, mas não sabemos até que ponto as personagens são de fato consistentes com o realismo da trama ou se são projeções da mente do narrador, que assim reproduz o desejo do próprio autor.
Em "O Diplomata e o Agente Funerário", a investigação se transforma em invenção e, à parte uns poucos capítulos metalinguísticos (nem sempre muito harmônicos), Rego de Almeida leva a narrativa no estilo seco do romance "noir" americano, iniciando seus leitores nas verdades da ficção.


O Diplomata e o Agente Funerário
   
Autor: Jacinto Rego de Almeida
Editora: Geração
Quanto: R$ 29 (188 págs.)



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