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ARTIGO
Pensamento de Bobbio extrapola "breve século 20"
RUBENS RICUPERO
COLUNISTA DA FOLHA
Filósofo militante, Norberto
Bobbio uniu pensamento e
ação ao longo de uma vida que
abrangeu mais do que o "breve
século 20", pois se iniciou antes da
1ª Guerra Mundial e se prolongou
bem além da queda do Muro de
Berlim. Nas últimas duas décadas,
converteu-se na consciência ética
e política de uma Itália mergulhada na crise moral da operação
"Mãos Limpas" e no desafio de
resgatar a democracia corrompida em um meio paralisado pelo
impasse esquerda-direita.
Expressão de uma cultura descentralizada, de profundas raízes
regionais, Bobbio passou quase
toda a vida na capital do seu amado Piemonte, Turim, cidade onde
nasceu em 18 de outubro de 1909,
estudou direito e filosofia e foi
professor universitário e jornalista, com exceção de passagens por
Siena e Pádua, e de breves visitas a
Roma ou ao estrangeiro.
Nos anos de formação, conviveu com figuras marcantes de sua
cidade natal: o escritor Leone
Guinzburg, marido da romancista Natalia, morto pelos nazistas, o
poeta Cesare Pavese, que se suicidou jovem, seu professor Luigi Einaudi, seu colega, o editor Giulio
Einaudi, o grande historiador
Franco Venturi.
Ele próprio considerou os 20
meses da Guerra de Libertação
(set.43-abr.45) como decisivos
em sua biografia. É o marco divisor entre um "antes", no qual
"tentamos sobreviver com algum
compromisso inevitável com a
nossa consciência e aproveitando
até os menores espaços de liberdade que o regime fascista... nos
concedia" e um "depois", no qual
nasce a democracia italiana.
Nesse período da pré-história
de sua vida de estudioso, fora forçado a ocupar-se de estudos jurídicos e filosóficos de "caráter politicamente asséptico". Isso não o
poupou de ser preso duas vezes
pelos fascistas, a segunda vez por
três meses em Verona, como
membro do clandestino Partido
de Ação, da Resistência. Terminada a guerra, com o retorno da liberdade, era natural, declarou,
que se dedicasse à democracia e à
paz, os problemas a enfrentar.
O vínculo entre o "antes" e o
"depois" foram os cursos de filosofia do direito, que ensinou até
1972, publicando "Teoria da Ciência Jurídica" (1950), "Estudos de
Teoria Geral do Direito" (1955),
"Teoria da Norma Jurídica"
(1958) etc.
Desde a Resistência, Bobbio havia começado a colaborar no jornal do Partido de Ação, "Justiça e
Liberdade", dirigido por Franco
Venturi. Embora lutando lado a
lado com os comunistas, o Partido de Ação não acreditava "num
socialismo que não fosse ao mesmo tempo liberdade". Suas idéias
anunciavam alguns temas constantes: desconfiança de uma política excessivamente ideologizada,
que divide e exclui; defesa do governo das leis contra o governo
dos homens; opção pelo laicismo
como exercício do espírito crítico
contra os dogmatismos opostos
dos católicos e dos comunistas.
A influência do filósofo piemontês não vai cessar de crescer
num país dividido entre essas
duas tendências majoritárias.
Não se identificando com as
idéias ou a prática de Gramsci,
Togliatti e Berlinguer, à esquerda,
nem com as de Dom Luigi Sturzo,
De Gasperi e Aldo Moro, na Democracia Cristã, Bobbio se filiou à
tradição italiana do liberalismo
leigo na cultura e na política. Sua
família espiritual foi a de Croce e
Luigi Einaudi, à qual adicionou o
elemento socialista democrático
de Gobetti e de Carlos Rosselli,
autor de "O Socialismo Liberal".
Sua posição era de negação total
em relação ao fascismo, antiliberal em política e anti-socialista em
economia. Diante do comunismo, contudo, a negação era dialética, isto é, não excluía a afirmação de tudo o que o comunismo
representara na derrota do fascismo e na antítese do capitalismo. O
fascismo era o inimigo. Os comunistas eram adversários com os
quais convinha iniciar um diálogo
sobre os temas da liberdade, da
justiça social e da democracia.
Esse diálogo vai cumprir-se em
duas etapas. A primeira, nos anos
50, visa demonstrar que as liberdades políticas não são apenas
uma conquista burguesa, a serem
descartadas sem maiores consequências pelo regime proletário,
mas a base da afirmação gradual,
primeiro do Estado liberal, mais
tarde do Estado democrático, ao
qual os próprios comunistas deveriam chegar como condição para salvar a revolução. O resultado
da discussão será recolhido em
"Política e Cultura" (1955).
Quase duas décadas depois,
quando a democracia liberal volta
a ser contestada por correntes influenciadas pelo Movimento de
1968, inclusive pelas Brigadas
Vermelhas com sua opção pela
"crítica das armas", Bobbio vai
reafirmar que não existe uma teoria marxista do
Estado capaz de
contrapor-se,
como modelo
alternativo, à
democracia representativa. O
debate inspirou
o livro "Qual
Socialismo?"
(1976) e mostrou que, dessa
vez, se havia estreitado muito a
distância que
antes o separava dos comunistas.
Em lugar da falsa oposição "democracia formal e burguesa" versus "democracia de conteúdo social", sua conclusão era de que a
democracia não admite adjetivos
e se define como o sistema de regras que permitem a instauração
e o desenvolvimento da convivência pacífica. Direitos humanos, democracia e paz são três
momentos do movimento histórico: sem direitos humanos reconhecidos e protegidos não há democracia; sem democracia não
existem condições mínimas para
a solução pacífica dos conflitos
sociais.
Em 1972, Norberto Bobbio se
transferiu para a Faculdade de
Ciências Políticas de Turim, onde
ensinou filosofia política até aposentar-se em 1984, como professor emérito. Sua bibliografia compreende centenas de artigos,
apostilas e ensaios, assim como
dezenas de livros sobre temas jurídicos de filosofia política ou de
militância, dentre os quais o
"Teoria das Formas de Governo"
(1976), "As Ideologias e o Poder
em Crise" (1981), "Problema da
Guerra e os Caminhos da Paz"
(1979), o polêmico "Uma Guerra
Justa?" (1991) sobre a Guerra do
Golfo etc.
Tendo escolhido o diálogo permanente com os marxistas sobre
o valor universal da democracia
em lugar da cruzada anticomunista, a queda do Muro de Berlim
justificou o acerto de sua opção:
"A história tinha dado razão a
nós, não a eles". Com o fim da
Guerra Fria e o colapso da 1ª República italiana, passa a existir,
como alternativa à esgotada coalizão liderada pela Democracia
Cristã, a possibilidade, pela primeira vez, de que chegue ao poder
uma esquerda marxista reconciliada
com a democracia e
aliada ao centro,
realizando o chamado "Compromisso Histórico".
Nesse momento
de afirmação dos
valores liberais, o
velho lutador não
desarmou e insistiu
no elemento que
faltava à sua equação ideal: a igualdade. Para ele, a distinção fundamental entre direita e esquerda é
que a primeira reúne as forças a
serviço dos interesses satisfeitos
com o "status quo", resignadas a
uma desigualdade por eles considerada como fatalidade impossível de mudar.
A esquerda, por outro lado, são
os que sentem e agem em favor
dos pobres e oprimidos, dos movimentos de liberação, dos que
acreditam na possibilidade de
mudar o mundo, de criar uma sociedade menos injusta.
Nomeado senador vitalício em
1984 pelo então presidente Sandro Pertini, sempre se considerou
nessa função mais como espectador curioso do que como ator.
Nunca foi ministro e, depois da
derrota de sua candidatura à
Constituinte de 1946 pelo Partido
de Ação, jamais se candidatou de
novo. Sua considerável influência
na Itália, Espanha e países da
América Latina decorreu da pregação de idéias na universidade e
sobretudo pelos escritos. A fim de
proferir conferências, esteve em
1982 e 1986 no Brasil, onde sua
obra se tornou conhecida graças
especialmente aos esforços de seu
amigo e discípulo, Celso Lafer.
Confessou que sua vida pública
foi monótona, sem que nela nada
acontecesse, salvo na vida privada, que valesse a pena ser contado: "Nascimento em família burguesa, os estudos habituais de um
rapaz de boa burguesia citadina,
liceu clássico e universidade, vida
sedentária transcorrida em grande parte entre as quatro paredes
de um escritório, ou na mais diversas bibliotecas do mundo, salvo algumas viagens para participar de congressos ou proferir
conferências, um casamento feliz
e vida familiar serena, vida pacífica num dos períodos mais dramáticos da história européia".
Casado por mais de 53 anos
com Valeria Cova e pai de três filhos homens, Bobbio apontava
como seus defeitos os nervos frágeis e a tendência a acessos de ira.
Definia-se, porém como homem
de diálogo, só não tendo conseguido dialogar com o movimento
estudantil de 1968. Moderado e
adepto da máxima de que "no
meio está a virtude", pessimista
por temperamento, agnóstico e
inclinado a achar as razões da dúvida mais convincentes do que as
da certeza, afirmava viver como
leigo num mundo que desconhece a dimensão da esperança, virtude puramente teológica.
Fiel aos clássicos de sua predileção -Hobbes, Locke, Rousseau,
Kant, Hegel-, autor de duas
obras-primas de literatura moral
e autobiográfica, "Elogio da Brandura" (1994) e "De Senectute"
("Tempo de Memória", no Brasil,
1996), identificava-se com os clássicos estóicos quando dizia que as
virtudes do leigo são o rigor crítico, a dúvida metódica, a moderação, a tolerância. Ou quando escolhia para se definir este trecho
que resume o legado de sabedoria
do coração deste sábio exemplar
do nosso tempo: "Aprendi a respeitar as idéias alheias, a deter-me
diante do segredo de cada consciência, a compreender antes de
discutir, a discutir antes de condenar. E já que estou em veia de confidências, faço uma ainda, talvez
supérflua: detesto os fanáticos
com toda a alma".
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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