São Paulo, quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

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NINA HORTA

Quando passar do ponto é bom...

Abriu o embrulho, esperando uma nova espécie de maconha. Mas não, era manteiga

VAMOS COMEÇAR o ano sem firulas. Fazendo manteiga. Pragmáticos. E descobrindo o que quer dizer "buttermilk" em inglês. Desde os 18 anos, lia receitas com o ingrediente "buttermilk".
Os dicionários divergiam entre soro do leite, nata etc e tal. Ou explicavam tão bem que o significado fugia. Outro dia, vi um artigo na revista de um jornal americano de Daniel Patterson, chef e dono do restaurante Coi, em São Francisco.
Uma queijeira (mulher que faz queijos) amiga dele, numa feira orgânica, ou melhor, naquelas feirinhas onde os vendedores são os próprios plantadores, criadores e artesãos, passou para ele um embrulhinho num papel pardo, recomendando bem baixo que não mostrasse a ninguém. Ele correu para o restaurante e abriu, esperando uma nova espécie de maconha. Mas não, era manteiga, da maravilhosa, dourada, densa, cremosa, doce. Que diabo é aquilo? Voltou para perguntar à sua traficante favorita quem fazia aquela gostosura. Era ela, mas só vendia um pouquinho para outro chef. Não queria todos os cozinheiros da Califórnia atrás dela, pressionando, reclamando, implorando manteiga...
Bom, pensou o Daniel Patterson, se a mulher não faz, tenho que aprender a fazer. Ela explicou com muita boa vontade, e ele só faltou morrer de vergonha. Não existia procedimento mais básico, e ele, que inventava sorvete quente de manjericão, nem sabia como fazer a manteiga que passava no pão.
"Bata o creme de leite até que ele coalhe e se separe do líquido." Na verdade, era aquilo que acontece quando vamos bater chantilly, passamos do ponto e ficamos doidos de raiva. Daí em diante, começou a treinar, a experimentar, a inventar moda. Precisava somente de uma boa batedeira e uma peneira ou cheesecloth, aquele pano fininho, quase uma gaze. (É vendido em algumas casas de utensílios de cozinha. Comprei na Suxxar aqui na praça Panamericana.)
Deixe umas seis xícaras de creme de leite orgânico (ou não) fora da geladeira. Despeje-o na tigela da batedeira, tampada, para não espirrar, e bata no ponto médio. O creme passará de chantilly, engrossará e mudará de cor para amarelinho claro (mais ou menos seis a oito minutos). Quando começar a empelotar, está quase pronto. Mais um minuto, e o líquido começará a se separar, batendo na tampa da tigela. Pare de bater. Ponha o pano fino ou peneira sobre uma outra vasilha e despeje o conteúdo da batedeira sobre ele. Coe o líquido de novo (que é o tal buttermilk). Separe. Com a manteiga ainda na peneira, trabalhe-a para equilibrar o restante do líquido com a gordura por uns cinco minutos. Junte o líquido que ainda escorreu com o outro, já separado, e leve-o à geladeira. Se quiser, junte um pouco de sal marinho à manteiga. Transfira para um recipiente hermeticamente fechado e leve à geladeira. Dá duas xícaras de manteiga e duas de buttermilk.
Afirma Daniel que o trabalho vale a pena, porque é econômico e melhora o gosto de tudo que ele faz, como massas e molhos. O buttermilk vai em shakes, no mingau ou sopa em geral e até no café ou chá.
Colocou a manteiga no couvert e não havia pão que chegasse. Achou que a manteiga não estava à altura do pão e começou a fazer seu próprio. Ficou com medo de ser apelidado de Martha Stewart se, além de tudo, inventasse de ter aulas de cerâmica para moldar as tigelinhas de manteiga das mesas. A queijeira amiga foi visitá-lo e proclamou que a manteiga dele era muito melhor que a dela. O que Daniel entendeu como um recado. Que ela não faria nem 100 g por semana para ele.
Vocês fariam sua própria manteiga? Eu, nos bons tempos (isto é, quando tinha tempo), faria. Hoje, experimentaria umas duas vezes e depois, na hora que precisasse muito, mandaria correndo ao supermercado. La vecchiaia che fa fare...


ninahorta@uol.com.br

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