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NINA HORTA
Quando passar do ponto é bom...
Abriu o embrulho, esperando uma nova espécie de maconha. Mas não, era manteiga
VAMOS COMEÇAR o ano sem firulas. Fazendo manteiga.
Pragmáticos. E descobrindo
o que quer dizer "buttermilk" em inglês. Desde os 18 anos, lia receitas
com o ingrediente "buttermilk".
Os dicionários divergiam entre soro do leite, nata etc e tal. Ou explicavam tão bem que o significado fugia.
Outro dia, vi um artigo na revista de
um jornal americano de Daniel
Patterson, chef e dono do restaurante Coi, em São Francisco.
Uma queijeira (mulher que faz
queijos) amiga dele, numa feira orgânica, ou melhor, naquelas feirinhas onde os vendedores são os próprios plantadores, criadores e artesãos, passou para ele um embrulhinho num papel pardo, recomendando bem baixo que não mostrasse a
ninguém. Ele correu para o restaurante e abriu, esperando uma nova
espécie de maconha. Mas não, era
manteiga, da maravilhosa, dourada,
densa, cremosa, doce. Que diabo é
aquilo? Voltou para perguntar à sua
traficante favorita quem fazia aquela gostosura. Era ela, mas só vendia
um pouquinho para outro chef. Não
queria todos os cozinheiros da Califórnia atrás dela, pressionando, reclamando, implorando manteiga...
Bom, pensou o Daniel Patterson,
se a mulher não faz, tenho que
aprender a fazer. Ela explicou com
muita boa vontade, e ele só faltou
morrer de vergonha. Não existia
procedimento mais básico, e ele, que
inventava sorvete quente de manjericão, nem sabia como fazer a manteiga que passava no pão.
"Bata o creme de leite até que ele
coalhe e se separe do líquido." Na
verdade, era aquilo que acontece
quando vamos bater chantilly, passamos do ponto e ficamos doidos de
raiva. Daí em diante, começou a treinar, a experimentar, a inventar moda. Precisava somente de uma boa
batedeira e uma peneira ou cheesecloth, aquele pano fininho, quase
uma gaze. (É vendido em algumas
casas de utensílios de cozinha. Comprei na Suxxar aqui na praça Panamericana.)
Deixe umas seis xícaras de creme
de leite orgânico (ou não) fora da geladeira. Despeje-o na tigela da batedeira, tampada, para não espirrar, e
bata no ponto médio. O creme passará de chantilly, engrossará e mudará de cor para amarelinho claro
(mais ou menos seis a oito minutos).
Quando começar a empelotar, está
quase pronto. Mais um minuto, e o
líquido começará a se separar, batendo na tampa da tigela. Pare de bater. Ponha o pano fino ou peneira sobre uma outra vasilha e despeje o
conteúdo da batedeira sobre ele.
Coe o líquido de novo (que é o tal
buttermilk). Separe. Com a manteiga ainda na peneira, trabalhe-a para
equilibrar o restante do líquido com
a gordura por uns cinco minutos.
Junte o líquido que ainda escorreu
com o outro, já separado, e leve-o à
geladeira. Se quiser, junte um pouco
de sal marinho à manteiga. Transfira para um recipiente hermeticamente fechado e leve à geladeira. Dá
duas xícaras de manteiga e duas de
buttermilk.
Afirma Daniel que o trabalho vale
a pena, porque é econômico e melhora o gosto de tudo que ele faz, como massas e molhos. O buttermilk
vai em shakes, no mingau ou sopa
em geral e até no café ou chá.
Colocou a manteiga no couvert e
não havia pão que chegasse. Achou
que a manteiga não estava à altura
do pão e começou a fazer seu próprio. Ficou com medo de ser apelidado de Martha Stewart se, além de
tudo, inventasse de ter aulas de cerâmica para moldar as tigelinhas de
manteiga das mesas. A queijeira
amiga foi visitá-lo e proclamou que a
manteiga dele era muito melhor que
a dela. O que Daniel entendeu como
um recado. Que ela não faria nem
100 g por semana para ele.
Vocês fariam sua própria manteiga? Eu, nos bons tempos (isto é,
quando tinha tempo), faria. Hoje,
experimentaria umas duas vezes e
depois, na hora que precisasse muito, mandaria correndo ao supermercado. La vecchiaia che fa fare...
ninahorta@uol.com.br
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