São Paulo, sábado, 10 de janeiro de 2009

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ANTONIO CICERO

O poeta Joan Brossa no Brasil


Ele havia trazido um tinteiro e uma pena de avestruz. Molhou a pena no tinteiro e saiu



EM DEZEMBRO de 1992, ao ser apresentado a Helena Severo, que no mês seguinte assumiria a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, sugeri-lhe que, em vez de promover apenas shows internacionais de rock, a prefeitura apoiasse também ciclos internacionais de palestras sobre filosofia, arte, literatura etc.
Tendo gostado da ideia, ela me pediu que desenvolvesse um projeto nesse sentido, coisa que foi logo noticiada pelos jornais. Pouco tempo depois, recebi um telefonema de Ana Lúcia Magalhães Pinto, que dirigia a programação cultural do Banco Nacional, dizendo que havia lido a matéria nos jornais e que o Banco Nacional estava disposto a financiar essa iniciativa.
Convidei o poeta Waly Salomão para trabalhar comigo. Na época, João Cabral era amplamente considerado o maior poeta vivo do Brasil. Como Waly e eu o admirávamos imensamente, pensamos logo em incluí-lo no primeiro ciclo.
O nome de João nos lembrou o do seu velho amigo, Joan Brossa, com cuja obra havíamos nos familiarizado pouco tempo antes. Sabíamos que Cabral, quando cônsul em Barcelona, no final da década de 40 e no começo da de 50, havia influenciado um importante grupo de jovens artistas e poetas de Barcelona, inclusive Brossa. Lembramo-nos também de outro "João", o grande poeta americano John Ashbery. Como nos parecia que o mais difícil de tudo seria conseguir a participação do nosso Cabral, que a essa altura andava bastante recluso, começamos pelos outros. Enviamos cartas para Brossa e Ashbery, que concordaram em nos receber, e fomos pessoalmente persuadi-los a vir ao Brasil.
Quando chegamos, na hora marcada, ao edifício em que Brossa morava, em Barcelona, tocamos a campainha várias vezes, inutilmente. Ninguém respondeu ao interfone nem veio abrir a porta. Não havia porteiro. Ligamos de um telefone público para o seu apartamento, mas quem atendeu foi uma secretária eletrônica. Dissemos que estávamos ali, à porta, e nada. Desconfiamos que podia haver algum engano no endereço e indagamos por Brossa aos garçons de um bar, na esquina. Jamais tinham ouvido falar dele. Disseram-nos que por ali havia, de fato, vivido um poeta, alguns anos atrás, mas que já morrera. Sentimos-nos mergulhados em pleno surrealismo catalão. Pela última vez, ligamos para o número de Brossa e falamos com a secretária eletrônica. Usando toda a sua capacidade dramática, Waly apelou para o sentimentalismo: havíamos atravessado o oceano Atlântico, dois pobres poetas, só para encontrar o grande Joan Brossa. Que desolação voltar para casa sem ao menos trocar duas palavras com o nosso ídolo!
Já estávamos realmente a ir embora, quando percebemos, à porta do edifício dele, uma senhora. Sem jamais a ter visto antes, Waly correu a abraçá-la, e ela abriu os braços para acolhê-lo. Lembrei-me de uma cena do filme soviético "Quando Voam as Cegonhas". Essa senhora era a esposa de Brossa. Este estava arrependido de ter consentido em nos receber. Ela, porém, não tendo resistido ao rompante sentimental de Waly, decidira que, querendo ou não, seu marido nos receberia.
Quando lá chegamos, Brossa foi cordial, mas firme: não havia questão de vir ao Brasil, pois se sentia descentrado até quando ia de trem a Valencia (a meia hora de Barcelona). De todo modo, continuamos a conversar. Falamos dos poemas visuais dele, falamos de João Cabral, que ele adorava, falamos do mundo em geral. Em duas horas, ficamos amigos, despedimo-nos e fomos embora, conformados. Que fazer? Procurar outro poeta.
Mal chegamos ao hotel e tocava o telefone: Brossa já estava de malas prontas para vir ao Brasil conosco. Felicíssimos, explicamos a ele que o encontro não era naquela semana, mas dali a três meses.
Depois de Brossa, foi relativamente fácil conseguir Ashbery e Cabral. A noite dos três poetas no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio foi extraordinária. Todos eles falaram coisas surpreendentes e memoráveis. Mas vou descrever apenas a performance poética feita por Brossa.
Ele havia trazido um tinteiro e uma pena de avestruz. Molhou a pena no tinteiro e saiu do palco, ostensivamente, para escrever alguma coisa. Voltou, molhou novamente a pena e saiu. Fez isso mais uma vez, e trouxe dos bastidores um envelope fechado. Escolheu uma moça bonita na plateia -por acaso era a Renata Sorrah-, entregou-lhe o envelope e lhe pediu que o abrisse dali a três minutos. Os três minutos pareceram três horas. Ao abrir a carta, estava escrito: FIM.


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