São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2007

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MANUEL DA COSTA PINTO

Inferno e purgatório da monotonia

"A Solidão do Diabo", do gaúcho Paulo Bentancur, explora os limites entre dois gêneros: conto e crônica

OS CONTOS de "A Solidão do Diabo", de Paulo Bentancur, estão divididos em duas partes: "Febre" (com narrativas recentes) e "Frio" (que já havia saído isoladamente). Em nota no final do livro, o autor dá a seguinte explicação: "A soma das duas partes se impôs pela unidade buscada: a de um inferno, no caso, seguido, retrospectivamente, por um purgatório -que o anuncia. Assim, o leitor pode sair destas páginas, talvez um tanto duras, não com a promessa de um paraíso, única região ausente, mas com a advertência necessária".
Tais palavras despistam. Num livro com 59 narrativas, não é fácil puxar o fio da meada, mas um traço comum é o ilusionismo, que diz respeito tanto à matéria ficcional quanto à indefinição de gênero.
Não por acaso, o primeiro conto é sobre um mágico que ambiciona fazer milagres, unindo o poder dos santos à malícia dos prestidigitadores: sua singularidade consistiria em usar a magia em metamorfoses malignas, numa inversão das performances circenses.
Um enredo desse tipo sugere simulacros à maneira de Kafka ou Borges -impressão reforçada pelo tema da narrativa seguinte, "A Bíblia 2", sobre uma continuação pós-apocalipse das Escrituras. Mesmo aí, entretanto, percebemos um procedimento que percorre a maioria dos textos: o rebaixamento irônico de questões metafísico-existenciais.
Vários contos têm personagens ensimesmados, ruminando sua inadequação ao mundo em apartamentos de classe média, ônibus e escritórios. Mas a configuração social a que pertencem e a linguagem que lhes é inerente serão seus limites. O prosaísmo de diálogos e descrições corrói tudo o que é pomposo e mostra como a banalidade cotidiana, que deflagra a náusea, é sem recurso.
De certo modo, Bentancur recria, em suas personagens, aquela identificação contraditória que temos com a chamada alta literatura. Quando lemos um livro como "O Processo", por exemplo, enxergamos à volta os vestígios do absurdo kafkiano -mas o efeito do horror é menos duradouro do que os aspectos risíveis de nossa realidade esculhambada.
Se esse é um aspecto especificamente brasileiro da experiência com a arte, o gaúcho Bentancur tem ouvido para a sensibilidade tropical, o que aproxima seus contos da crônica, gênero apto a captar sentimentos ao rés-do-chão.
Algumas narrativas são marcadas pelo tom malandro, quase pornográfico, com que trata proezas e misérias da vida amorosa. As mais emblemáticas, porém, são "Crusoé", em que o narrador recorre ao náufrago de Daniel Defoe para pintar o auto-retrato de seus fracassos ("não consigo mover minha nau de ossos e peles"), e "Como um Anjo", cujo protagonista atravessa o tempo sem testemunhar atrocidades e espera que a morte lhe dê o mesmo que a vida: "Nenhum sobressalto" -ou seja, uma monotonia que está no coração do inferno e do purgatório de Bentancur.


A SOLIDÃO DO DIABO    
Autor: Paulo Bentancur
Editora: Bertrand Brasil
Quanto: R$ 45 (352 págs.)


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