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MANUEL DA COSTA PINTO
Inferno e purgatório da monotonia
"A Solidão do Diabo", do gaúcho Paulo Bentancur, explora os limites entre
dois gêneros: conto e crônica
OS CONTOS de "A Solidão do
Diabo", de Paulo Bentancur,
estão divididos em duas partes: "Febre" (com narrativas recentes) e "Frio" (que já havia saído isoladamente). Em nota no final do livro, o autor dá a seguinte explicação:
"A soma das duas partes se impôs
pela unidade buscada: a de um inferno, no caso, seguido, retrospectivamente, por um purgatório -que o
anuncia. Assim, o leitor pode sair
destas páginas, talvez um tanto duras, não com a promessa de um paraíso, única região ausente, mas com
a advertência necessária".
Tais palavras despistam. Num livro com 59 narrativas, não é fácil puxar o fio da meada, mas um traço comum é o ilusionismo, que diz respeito tanto à matéria ficcional quanto à
indefinição de gênero.
Não por acaso, o primeiro conto é
sobre um mágico que ambiciona fazer milagres, unindo o poder dos
santos à malícia dos prestidigitadores: sua singularidade consistiria em
usar a magia em metamorfoses malignas, numa inversão das performances circenses.
Um enredo desse tipo sugere simulacros à maneira de Kafka ou
Borges -impressão reforçada pelo
tema da narrativa seguinte, "A Bíblia
2", sobre uma continuação pós-apocalipse das Escrituras. Mesmo aí,
entretanto, percebemos um procedimento que percorre a maioria dos
textos: o rebaixamento irônico de
questões metafísico-existenciais.
Vários contos têm personagens
ensimesmados, ruminando sua inadequação ao mundo em apartamentos de classe média, ônibus e escritórios. Mas a configuração social a que
pertencem e a linguagem que lhes é
inerente serão seus limites. O prosaísmo de diálogos e descrições corrói tudo o que é pomposo e mostra
como a banalidade cotidiana, que
deflagra a náusea, é sem recurso.
De certo modo, Bentancur recria,
em suas personagens, aquela identificação contraditória que temos
com a chamada alta literatura.
Quando lemos um livro como "O
Processo", por exemplo, enxergamos à volta os vestígios do absurdo
kafkiano -mas o efeito do horror é
menos duradouro do que os aspectos risíveis de nossa realidade esculhambada.
Se esse é um aspecto especificamente brasileiro da experiência
com a arte, o gaúcho Bentancur tem
ouvido para a sensibilidade tropical,
o que aproxima seus contos da crônica, gênero apto a captar sentimentos ao rés-do-chão.
Algumas narrativas são marcadas
pelo tom malandro, quase pornográfico, com que trata proezas e misérias da vida amorosa. As mais emblemáticas, porém, são "Crusoé",
em que o narrador recorre ao náufrago de Daniel Defoe para pintar o
auto-retrato de seus fracassos ("não
consigo mover minha nau de ossos e
peles"), e "Como um Anjo", cujo
protagonista atravessa o tempo sem
testemunhar atrocidades e espera
que a morte lhe dê o mesmo que a vida: "Nenhum sobressalto" -ou seja,
uma monotonia que está no coração
do inferno e do purgatório de Bentancur.
A SOLIDÃO DO DIABO
Autor: Paulo Bentancur
Editora: Bertrand Brasil
Quanto: R$ 45 (352 págs.)
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