São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Memória

Diretor Ozualdo Candeias inaugurou, a contragosto, o cinema marginal

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Marginal entre marginais", segundo a feliz definição do crítico Jairo Ferreira, Ozualdo Candeias, que morreu anteontem aos 88 anos, foi, ao lado de José Mojica Marins, um dos raros cineastas brasileiros oriundos das camadas populares.
Antes de realizar filmes marcantes como "A Margem" (1967), "A Herança" (1971) e "Manelão, o Caçador de Orelhas" (1983), Candeias, nascido em Cajubi (SP), trabalhou na roça, foi militar, motorista de caminhão e taxista.
Em seu cinema radical e sem concessões, experiências estéticas de vanguarda e elementos da chamada "alta cultura" passam pelo crivo dessa dura vivência popular.
Trabalhando em condições materiais precárias, Candeias teve sua obra truncada e cerceada pela censura política, na época do regime militar, e depois pela falta de interesse dos produtores e investidores.
Seu último longa, "O Vigilante" (1992), que enfocava a história de um justiceiro de periferia, nem chegou a ser lançado comercialmente. Sua carreira como diretor começou de modo explosivo, com "A Margem", tragédia de dois homens e duas mulheres que sobrevivem nas franjas mais miseráveis da sociedade paulistana.

À margem do mercado
Malgrado o próprio autor, o filme acabou sendo visto como marco inicial do "cinema marginal". O longa ganhou vários prêmios e a crítica viu no bote que transporta os personagens referências ao barco de Caronte, no "Inferno" de Dante. Anos depois, Candeias rebateu: "Isso é ignorância. Não sabem que antigamente, quando não havia tantas pontes nem as marginais do Tietê, pequenos barcos transportavam pessoas e cargas de uma margem à outra".
Quatro anos depois, o cineasta faria, em "A Herança", uma versão personalíssima de "Hamlet", sem diálogos e com David Cardoso como protagonista. Radicalizando sua produção nos anos 70, Candeias teve problemas com a censura e foi cada vez mais relegado à margem. "Caçada Sangrenta" (1973) foi mutilado pela censura e pelo produtor (David Cardoso). Realizou em seguida dois médias-metragens que ele próprio qualificou de "subterrâneos": "Zézero" e "Candinho". Era o "underground", versão Boca do Lixo paulistana.
A Boca do Lixo, aliás, sempre foi o elemento de Candeias, que ali realizou seus filmes e trabalhou em obras alheias como roteirista, operador de câmera, fotógrafo e montador.
Empenhado em documentar aquela região decadente, com seu pólo produtor de cinema e sua população marginalizada, Candeias fotografou a Boca e realizou, nos anos 80, duas exposições sobre o assunto, além de dirigir o curta documental "Festa na Boca". A Boca do Lixo está de luto. Raras vezes um artista esteve tão entranhadamente ligado à sua aldeia.


Texto Anterior: Novo filme será "A Mulher sem Cabeça"
Próximo Texto: Vitrine
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.