São Paulo, terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Máquinas, não


O que impressiona é a própria definição de vida que o governo quer converter em doutrina

A ÚLTIMA vez que o meu pai falou comigo foi para dizer o que eu já sabia. Ele estava deitado numa cama de hospital, consciente de que o fim era certo. Uma doença, uma terrível doença neurológica que se instalara dois anos antes, roubara tudo durante esse tempo. Roubara as caminhadas. Os gestos mais simples. O gosto pela mesa. E, finalmente, as palavras. Para alguém que sempre valorizara a conversa como forma suprema de civilidade, penso que o desaparecimento das palavras foi o golpe definitivo.
Restou apenas um corpo rigorosamente pétreo e inútil, mas com uma alma enorme aprisionada dentro dele. Nesse dia quente de verão, o meu pai abriu os olhos quando me aproximei; depois, abriu-os ainda mais (uma forma de chamamento).
Quando eu encostei o meu rosto ao dele, as palavras foram ditas com esforço desumano: "Máquinas, não". Não precisava dizer. A família conhecia o seu último pedido: máquinas, não. Quando o corpo se apagasse naturalmente, ele desejava partir naturalmente. Aceitando, no fundo, a conclusão do seu ciclo vital. A doença retirara-lhe muito; não lhe retirara a dignidade, que eu via intacta no seu olhar. Ligá-lo a uma máquina seria a traição definitiva ao homem que ele foi.
A minha história não tem nada de especial. É idêntica à história de incontáveis famílias que, na solidão anônima do sofrimento, se confrontam com o dilema: que fazer quando o corpo das pessoas que amamos se encaminha para o seu limbo sem possibilidade de retorno?
A questão não pode ser confundida com a vulgar eutanásia. Porque existe uma diferença fundamental entre matar e deixar morrer.
A primeira opção sempre me pareceu uma negação da ética médica e, além disso, um crime objetivo, que nenhuma sociedade civilizada deveria tolerar. Uma negação da ética médica, desde logo, porque a medicina existe para curar, não para matar. E a impossibilidade de cura não implica, logicamente, a transposição da fronteira que nos conduz para o homicídio puro e simples. O "direito à morte", proclamado pelos defensores da eutanásia, sempre me pareceu uma forma encapotada de defender o "dever de morte" quando a vida humana não pode ser vivida na sua plenitude.
Acontece que é possível não viver na plenitude das nossas capacidades físicas e, apesar de tudo, levar existências válidas e mesmo felizes. O meu pai foi também um exemplo de que a quebra da autonomia individual não significou necessariamente o apagamento da sua validade como ser humano. Legitimar o "direito à morte" não é mais do que aceitar que algumas vidas, apenas porque marcadas pela doença, ocupam um patamar inferior de dignidade.
Repito: existe uma diferença fundamental entre matar e deixar morrer. E a segunda opção, ao contrário da primeira, é precisamente o que sucede na Itália. O caso é conhecido: Eluana Englaro teve um brutal acidente de viação há 17 anos. Em coma irreversível durante esse período, a existência de Eluana é suportada por máquinas que fazem o trabalho por ela. Não falamos de uma vida.
Falamos de uma vida artificial, sustentada pelo trabalho de máquinas e não pelo mistério intangível a que alguns dão o nome de alma. Os pais, que há 17 anos estão em sofrimento com a filha, pretendem que o corpo da jovem possa cumprir o seu destino. A máxima corte de Justiça do país concorda com os pais e autoriza os médicos a não prosseguir com a alimentação artificial.
Mas o governo Berlusconi, pressionado pelo Vaticano e pelo eleitorado católico, pretende prolongar uma vida que, para todos os efeitos, já terminou há 17 anos. Desconheço como terminará o caso. Mas o que impressiona na história de Eluana não é apenas a forma como um drama familiar e privado se converte em guerrilha ideológica.
O que impressiona verdadeiramente é a própria definição de vida humana que o governo Berlusconi pretende converter em doutrina. Para Berlusconi, uma vida é apenas um simulacro de vida: um conjunto de funções fisiológicas que ocorre num corpo inerme.
O meu pai morreu no dia seguinte ao nosso último encontro. Foi uma morte sem sofrimento e sem drama.
Foi, se quiserem, um pacto justo: o corpo despediu-se dele e ele despediu-se do corpo. Mas foi também a morte de um católico: como homem de fé que era, o meu pai sempre acreditou que a vida humana depende do dedo de Deus. E eu sei que, para ele, teria sido uma suprema heresia substituir esse toque divino pelo dedo transitório dos homens.

jpcoutinho@folha.com.br


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