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RODAPÉ
Geologia vernacular
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Erefuê" , livro que será
lançado nesta semana,
confirma o talento de Evandro
Affonso Ferreira como pesquisador e inventor de linguagem. Assim como em seus títulos anteriores ("Grogotó!" e "Araã!"), esse
mineiro nascido em Araxá em
1945 realiza um trabalho de prospecção lexical, com narrativas saturadas de termos antigos, expressões do português arcaico e
de línguas indígenas.
À primeira vista, Ferreira parece
ter uma relação museológica com
a palavra. Suas frases são pontuadas por interjeições como "apre",
"erê", "huifa"; suas personagens
podem ser uma "menina pongó"
ou uma "velha espandongada",
desfiando impropérios que lembram os ataques de raiva do capitão Haddock, das histórias em
quadrinhos de Tintim: "Salaz canalha tafulão sicofanta mendaz
furbesco biltre calafange bandurrilha", impreca o narrador de um
dos microcontos de "Grogotó!".
O efeito é tão irresistível quanto
incompreensível. Mas seria incorreto reduzir a literatura de Ferreira aos momentos de humor "nonsense" proporcionados por termos que soam estrangeiros. Como "Erefuê" mostra exemplarmente, a comicidade da linguagem está inserida numa contexto
de estranhamento e bizarrice.
O romance tem três planos que
se intercalam. O narrador, Menelau, está num tribunal, onde espera uma sentença por assassinato:
seu crime foi ter matado o amante
da mulher, após flagrá-los numa
banheira. Enquanto espera a decisão dos jurados, Menelau relembra as várias fases de seu casamento com Helena -que, ao longo do livro, vai sendo descrita por
locuções que desvelam sua devassidão: "helena-piturisca", "helena-arremedo-de-messalina" etc.
Essa narrativa em "flashback"
tem a velocidade de um fluxo da
consciência. "Lembranças chegam de cambulhada", diz Menelau, cuja rememoração vem carregada de onomatopéias e com
uma sintaxe cheia de inversões:
"Dez anos ao lado de helena-fuampa hã passado amazelado
dela não vai se perder nunca-jamais no abismo do esquecimento; em matéria de fidelidade foi de
jeito nenhum paradigma da ortodoxia; puh pensar que por ela helena-clódia aquela seria capaz de
roubar tridente de Netuno as flexas de Apolo a espada de Marte".
Quando essa algaravia começa e
ameaça se tornar um obstáculo
para a leitura, Ferreira introduz o
terceiro plano narrativo, que alivia o texto: capítulos em forma de
diálogo, nos quais os jurados do
processo de Menelau se embrenham em discussões filosóficas
tão eruditas quanto despropositadas. A partir disso, é possível entender o quadro em que se insere
a geologia vernacular do autor. As
referências mitológicas do casal
Menelau-Helena e a imagem dos
jurados como as Parcas que tecem o destino do condenado em
"diálogos platônicos" são, como a
linguagem de Ferreira, uma forma de teatralizar a banalidade do
crime passional e da vida burocrática.
Ao mesmo tempo, o exagero
alegórico, o rebuscamento retórico e os tiques nervosos de Menelau ironizam o melodrama e impedem qualquer possibilidade de
glamourizar essa realidade que é
tão mórbida quanto a língua morta que Ferreira usa para satirizá-la. Em tempo: não tenho a menor
idéia do que significa "erefuê".
Erefuê
Autora: Evandro Affonso Ferreira
Editora: 34
Quanto: R$ 23 (120 págs.)
Lançamento: 14/4, às 19h, na livraria
Boa Vista (av. Brig. Faria Lima, 2.007, São
Paulo, tel. 0/xx/11/3031-4158)
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