São Paulo, sábado, 10 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Geologia vernacular

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Erefuê" , livro que será lançado nesta semana, confirma o talento de Evandro Affonso Ferreira como pesquisador e inventor de linguagem. Assim como em seus títulos anteriores ("Grogotó!" e "Araã!"), esse mineiro nascido em Araxá em 1945 realiza um trabalho de prospecção lexical, com narrativas saturadas de termos antigos, expressões do português arcaico e de línguas indígenas.
À primeira vista, Ferreira parece ter uma relação museológica com a palavra. Suas frases são pontuadas por interjeições como "apre", "erê", "huifa"; suas personagens podem ser uma "menina pongó" ou uma "velha espandongada", desfiando impropérios que lembram os ataques de raiva do capitão Haddock, das histórias em quadrinhos de Tintim: "Salaz canalha tafulão sicofanta mendaz furbesco biltre calafange bandurrilha", impreca o narrador de um dos microcontos de "Grogotó!".
O efeito é tão irresistível quanto incompreensível. Mas seria incorreto reduzir a literatura de Ferreira aos momentos de humor "nonsense" proporcionados por termos que soam estrangeiros. Como "Erefuê" mostra exemplarmente, a comicidade da linguagem está inserida numa contexto de estranhamento e bizarrice.
O romance tem três planos que se intercalam. O narrador, Menelau, está num tribunal, onde espera uma sentença por assassinato: seu crime foi ter matado o amante da mulher, após flagrá-los numa banheira. Enquanto espera a decisão dos jurados, Menelau relembra as várias fases de seu casamento com Helena -que, ao longo do livro, vai sendo descrita por locuções que desvelam sua devassidão: "helena-piturisca", "helena-arremedo-de-messalina" etc.
Essa narrativa em "flashback" tem a velocidade de um fluxo da consciência. "Lembranças chegam de cambulhada", diz Menelau, cuja rememoração vem carregada de onomatopéias e com uma sintaxe cheia de inversões: "Dez anos ao lado de helena-fuampa hã passado amazelado dela não vai se perder nunca-jamais no abismo do esquecimento; em matéria de fidelidade foi de jeito nenhum paradigma da ortodoxia; puh pensar que por ela helena-clódia aquela seria capaz de roubar tridente de Netuno as flexas de Apolo a espada de Marte".
Quando essa algaravia começa e ameaça se tornar um obstáculo para a leitura, Ferreira introduz o terceiro plano narrativo, que alivia o texto: capítulos em forma de diálogo, nos quais os jurados do processo de Menelau se embrenham em discussões filosóficas tão eruditas quanto despropositadas. A partir disso, é possível entender o quadro em que se insere a geologia vernacular do autor. As referências mitológicas do casal Menelau-Helena e a imagem dos jurados como as Parcas que tecem o destino do condenado em "diálogos platônicos" são, como a linguagem de Ferreira, uma forma de teatralizar a banalidade do crime passional e da vida burocrática.
Ao mesmo tempo, o exagero alegórico, o rebuscamento retórico e os tiques nervosos de Menelau ironizam o melodrama e impedem qualquer possibilidade de glamourizar essa realidade que é tão mórbida quanto a língua morta que Ferreira usa para satirizá-la. Em tempo: não tenho a menor idéia do que significa "erefuê".


Erefuê
   
Autora: Evandro Affonso Ferreira
Editora: 34
Quanto: R$ 23 (120 págs.)
Lançamento: 14/4, às 19h, na livraria Boa Vista (av. Brig. Faria Lima, 2.007, São Paulo, tel. 0/xx/11/3031-4158)



Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: "Pais e filhos": Turguêniev apresenta ficção russa à sutileza
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.