São Paulo, domingo, 10 de abril de 2005

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FERREIRA GULLAR

Um passarinho me contou...

Encontrei-o no calçadão do Leme, sentamos para tomar um chope e falamos, entre outras coisas, da violência no Rio. Cláudio -não é esse seu nome- disse-me que, hoje, não sabe se tem mais medo do bandido ou da polícia. Devo acrescentar que ele nasceu na Baixada Fluminense e ali morou até pouco tempo. Um parente seu, que serve na Polícia Militar, contou-lhe coisas que agora passo a vocês, sem poder atestar sua veracidade.
Contou, por exemplo, que policial militar que trabalha na rua tem de descolar pelo menos R$ 60 por dia para pagar suas refeições e a gasolina que consome para ir trabalhar de carro, já que, se tomar um ônibus, está arriscado a ser morto. Por isso mesmo, todos querem ser escalados para trabalhar na fiscalização de veículos, mas só é escalado quem der R$ 200 ao encarregado da escalação. Como cada patrulha tem uma cota mínima de multas e apreensão de veículos por dia, completada a cota, começa o achaque. Há cotas igualmente para a apreensão de drogas e armas: cumprida a exigência, tudo o que for apreendido numa favela é vendido aos traficantes de outra favela. No fim do mês, o comando do batalhão chama a imprensa e mostra as armas e drogas apreendidas graças à ação da polícia militar.
Segundo Cláudio, seu parente PM contou-lhe que, certa noite, na Barra da Tijuca, a patrulha em que estava parou um carro suspeito e encontrou dentro dele fuzis, revólveres e até um maçarico. Os ocupantes do carro, ao serem apertados, confessaram que iam assaltar um bingo da Barra, cujo segurança lhes havia informado haver no cofre uns R$ 250 mil. E propuseram rachar a grana com os policiais se estes os liberassem. "Está nos achando com cara de otários? Vocês com essas armas e com o dinheiro vão é se mandar. Nada feito."
Então os bandidos fizeram outra proposta: dariam aos policiais dez milhas ali, na hora. Os policiais contrapropuseram 20 milhas. Os bandidos toparam, começaram a telefonar para tentar conseguir a grana, mas, como não conseguiram, foram levados presos para o quartel juntamente com as armas e o maçarico. As armas foram completar a cota de apreensão do mês e exibidas aos jornalistas que noticiaram o fato: "PM impede assalto a um bingo da Barra".
Se a PM faz uma incursão numa favela e apreende grande quantidade de dinheiro, drogas e armas -teria contado o primo dele-, parte das armas e da droga é levada para o quartel; a outra parte será vendida e o dinheiro, dividido entre os integrantes da patrulha.
Acrescentou que, certa vez, participou da incursão numa favela sob o comando de um aspirante a oficial, que fazia sua estréia. Terminada a operação, ele deu ordem para que todas as armas, drogas e dinheiro fossem postos em sua viatura e levados para o quartel.
- Essa não!, protestou um dos policiais.
- Quem comanda sou eu, reagiu o aspirante. Vai tudo para o quartel.
- Mata ele, falou outro soldado. Mata logo esse babaca!
O jovem oficial, embora assustado, manteve-se firme. Foi aí que um outro soldado o chamou à parte e lhe explicou que o pessoal ganhava pouco para arriscar a vida naquelas operações. A compensação era ficar com parte do que apreendiam.
- Mas isso é crime, respondeu o aspirante.
- Então você escolhe. Para nós, não custa nada te dar um tiro na cabeça e dizer que foram os bandidos.
O tenente cedeu e foi advertido de que, se os denunciasse, seria executado. Não há muita escolha, afirmou Cláudio, ou o cara se corrompe ou morre.
Mal podia acreditar no que ouvia e, por isso, perguntei se achava que tudo aquilo era de fato verdade.
- Por que ele iria inventar tudo isso se também se confessa envolvido na coisa?
- Para você, isso é exceção ou é a regra?
- Pelo que ele me disse, é a regra, embora dependa da ocasião.
- Não acredito que toda a PM seja corrupta.
- Bem, há uns tantos, como os evangélicos, que pedem para trabalhar no quartel, porque sabem que, na rua, é difícil não entrar no jogo dos outros.
E me contou outra história que ouvira de seu parente. Uma patrulha saiu para uma operação levando dois fuzis que pertenciam à corporação. Ao chegarem à favela, o sargento que comandava a patrulha ordenou que as armas fossem postas em sua viatura, mas um soldado protestou, alegando que os fuzis tinham sido retirados do paiol sob sua responsabilidade. De nada adiantou e, ao terminar a operação, os fuzis haviam desaparecido.
O sargento então acusou o soldado que protestara de ter se apossado das armas. Armou-se uma discussão que terminou na denúncia levada ao comando pelo soldado. Foram todos detidos para averiguação e aberto um inquérito que concluiu pela culpabilidade do sargento. Ficou demonstrado que ele dera sumiço nos fuzis para vendê-los a traficantes. Mas não foi nem preso muito menos expulso da corporação. Continua lá, trabalhando, e todo mês é descontado de seu soldo parte do valor dos fuzis.
- É como se ele tivesse comprado os fuzis a prestações, disse eu.
E ele, rindo:
- É mais ou menos isso.
Dois dias depois desta conversa, policiais militares mataram aleatoriamente 30 pessoas na Baixada Fluminense, ao que tudo indica para advertir o comando que ameaçou punir alguns deles.

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