São Paulo, terça-feira, 10 de abril de 2007

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BERNARDO CARVALHO

A falta é o sentido

O documentário "Santiago" serve-se da figura verborrágica do mordomo para dizer que não pode dizer

É NATURAL hesitar em falar de "Santiago", documentário de João Moreira Salles exibido no É Tudo Verdade. O próprio filme fala o tempo todo da hesitação. O diretor levou 13 anos para finalizá-lo, desde que registrou as primeiras imagens do mordomo aposentado da casa onde passara infância e adolescência.
Nesse meio-tempo, como diz a voz em off conduzindo o espectador, falando em nome do documentarista, em primeira pessoa, muita coisa mudou, o personagem morreu, houve um amadurecimento e as imagens postas de lado de repente ganharam um sentido que antes pareciam não ter. Mais que isso: 13 anos foi o tempo para o cineasta compreender que a falta era o sentido.
"Santiago" é um filme paradoxalmente pessoal. O diretor interfere no depoimento do personagem, manipula-o abertamente e termina confessando o que as imagens e o som já tinham deixado bem claro: uma relação de classe e de poder com o seu objeto. Por mais que tente, nunca deixará de ser o filho do patrão do mordomo.
Muita gente que assistiu ao filme comentou a coragem do cineasta em se expor dessa forma. No fundo, "Santiago" trata -e isso não apenas pela relação viciada entre o mordomo e o filho do patrão, mas pela própria personalidade do mordomo- de um vazio que se exprime pela impossibilidade de se expor. E, portanto, de uma exposição muito maior do que pode dar conta a confissão do documentarista que manipula o seu objeto. Tudo é alusivo e tangencial. O que o filme está dizendo não está ali. Em nenhuma das imagens. Em nada do que é dito. E, ao mesmo tempo, está em toda parte, em cada uma das imagens, a se expor pela ausência. É essa a sua tragédia e a sua beleza.
Santiago era um homem fascinado por reis e rainhas, que fossem egípcios, persas, italianos, ingleses, franceses ou indígenas. Ao longo da vida, sempre trabalhando como mordomo, copiou pilhas e pilhas de histórias de nobres dos quatro cantos do planeta. Sua erudição enciclopédica se confundia com a ficção e com o sonho que projetava à sua volta, no cerimonial doméstico a serviço de uma família da alta burguesia, num país de desigualdades sociais extremas, na periferia do capitalismo. Poderia ser um personagem de Borges, seu conterrâneo.
O documentário começa com a imagem da entrada da casa vazia da família Moreira Salles, na Gávea. O lugar foi abandonado. Já não há ninguém, nenhum convidado ilustre nem nenhum cerimonial. O passado se perdeu e sobrevive apenas na nostalgia das imagens pouco nítidas de eventuais filmes caseiros com os pais e os filhos em torno da piscina - imagens que, na evocação implícita da perda, esboçam uma narrativa e lembram, embora com marcante diferença de classe, a série "Pictures from Home", do fotógrafo americano Larry Sultan. Agora, velho e aposentado, Santiago vive confinado num pequeno apartamento, cercado pelas montanhas de compilações sobre antigas dinastias que passou a vida copiando. É o que lhe resta. Memórias de gente a quem serviu ou com quem sonhou. Tudo é desilusão, decadência e morte.
Quando a câmera está ligada, Santiago fala sem parar. Repete o que acabou de dizer, como faria um ator ou uma marionete nas mãos do cineasta, sempre que este não fica satisfeito com uma tomada. Continua a seu serviço. Tem um gosto afetado por ópera e por nomes. Sua erudição enciclopédica é proporcional ao vazio do que diz. Nada é pessoal, nada é íntimo. Tudo é ao mesmo tempo acúmulo e supressão de si. Seu mundo está reduzido ao que não é seu. O máximo que consegue expressar de si mesmo é uma dança tortuosa das mãos ao som de música. E quando pela primeira vez ousa ter uma vontade -diz que faz parte de uma sociedade de malditos e quer recitar um poema-, quando finalmente ele parece querer exprimir um desejo, o cineasta diz que não é preciso e corta a imagem. O que resta é o som: o filho do patrão a lhe dizer que aquilo não interessa, e mais nada.
É nesse momento, anunciado pela voz em off, que o filme se revela. E não só pelo fato de o diretor se mostrar e fazer o seu mea-culpa como sujeito de classe, tolhendo a expressão natural e espontânea do empregado. Afinal, o documentário não é sobre Santiago. Serve-se da figura do mordomo, ao mesmo tempo verborrágico, afetado e vazio, para dizer que não pode dizer.
Que nenhuma imagem nem nenhuma palavra pode dar conta do que tem a dizer. E que em algum lugar desse vazio está a dor e a plenitude de um sentido que só pode ser compreendido pela falta.


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