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BERNARDO CARVALHO
A falta é o sentido
O documentário "Santiago" serve-se da figura verborrágica do mordomo para dizer que não pode dizer
É NATURAL hesitar em falar de
"Santiago", documentário de
João Moreira Salles exibido
no É Tudo Verdade. O próprio filme
fala o tempo todo da hesitação. O diretor levou 13 anos para finalizá-lo,
desde que registrou as primeiras
imagens do mordomo aposentado
da casa onde passara infância e adolescência.
Nesse meio-tempo, como diz a voz
em off conduzindo o espectador, falando em nome do documentarista,
em primeira pessoa, muita coisa
mudou, o personagem morreu, houve um amadurecimento e as imagens postas de lado de repente ganharam um sentido que antes pareciam não ter. Mais que isso: 13 anos
foi o tempo para o cineasta compreender que a falta era o sentido.
"Santiago" é um filme paradoxalmente pessoal. O diretor interfere
no depoimento do personagem, manipula-o abertamente e termina
confessando o que as imagens e o
som já tinham deixado bem claro:
uma relação de classe e de poder
com o seu objeto. Por mais que tente, nunca deixará de ser o filho do
patrão do mordomo.
Muita gente que assistiu ao filme
comentou a coragem do cineasta em
se expor dessa forma. No fundo,
"Santiago" trata -e isso não apenas
pela relação viciada entre o mordomo e o filho do patrão, mas pela própria personalidade do mordomo-
de um vazio que se exprime pela impossibilidade de se expor. E, portanto, de uma exposição muito maior
do que pode dar conta a confissão do
documentarista que manipula o seu
objeto. Tudo é alusivo e tangencial.
O que o filme está dizendo não está
ali. Em nenhuma das imagens. Em
nada do que é dito. E, ao mesmo
tempo, está em toda parte, em cada
uma das imagens, a se expor pela ausência. É essa a sua tragédia e a sua
beleza.
Santiago era um homem fascinado por reis e rainhas, que fossem
egípcios, persas, italianos, ingleses,
franceses ou indígenas. Ao longo da
vida, sempre trabalhando como
mordomo, copiou pilhas e pilhas de
histórias de nobres dos quatro cantos do planeta. Sua erudição enciclopédica se confundia com a ficção e
com o sonho que projetava à sua volta, no cerimonial doméstico a serviço de uma família da alta burguesia,
num país de desigualdades sociais
extremas, na periferia do capitalismo. Poderia ser um personagem de
Borges, seu conterrâneo.
O documentário começa com a
imagem da entrada da casa vazia da
família Moreira Salles, na Gávea. O
lugar foi abandonado. Já não há ninguém, nenhum convidado ilustre
nem nenhum cerimonial. O passado
se perdeu e sobrevive apenas na
nostalgia das imagens pouco nítidas
de eventuais filmes caseiros com os
pais e os filhos em torno da piscina
- imagens que, na evocação implícita da perda, esboçam uma narrativa
e lembram, embora com marcante
diferença de classe, a série "Pictures
from Home", do fotógrafo americano Larry Sultan. Agora, velho e aposentado, Santiago vive confinado
num pequeno apartamento, cercado pelas montanhas de compilações
sobre antigas dinastias que passou a
vida copiando. É o que lhe resta. Memórias de gente a quem serviu ou
com quem sonhou. Tudo é desilusão, decadência e morte.
Quando a câmera está ligada, Santiago fala sem parar. Repete o que
acabou de dizer, como faria um ator
ou uma marionete nas mãos do cineasta, sempre que este não fica satisfeito com uma tomada. Continua
a seu serviço. Tem um gosto afetado
por ópera e por nomes. Sua erudição
enciclopédica é proporcional ao vazio do que diz. Nada é pessoal, nada é
íntimo. Tudo é ao mesmo tempo
acúmulo e supressão de si. Seu mundo está reduzido ao que não é seu. O
máximo que consegue expressar de
si mesmo é uma dança tortuosa das
mãos ao som de música. E quando
pela primeira vez ousa ter uma vontade -diz que faz parte de uma sociedade de malditos e quer recitar
um poema-, quando finalmente ele
parece querer exprimir um desejo, o
cineasta diz que não é preciso e corta
a imagem. O que resta é o som: o filho do patrão a lhe dizer que aquilo
não interessa, e mais nada.
É nesse momento, anunciado pela
voz em off, que o filme se revela. E
não só pelo fato de o diretor se mostrar e fazer o seu mea-culpa como
sujeito de classe, tolhendo a expressão natural e espontânea do empregado. Afinal, o documentário não é
sobre Santiago. Serve-se da figura do
mordomo, ao mesmo tempo verborrágico, afetado e vazio, para dizer
que não pode dizer.
Que nenhuma imagem nem nenhuma palavra pode dar conta do
que tem a dizer. E que em algum lugar desse vazio está a dor e a plenitude de um sentido que só pode ser
compreendido pela falta.
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