São Paulo, sexta-feira, 10 de abril de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

Os soluços longos do outono


A vida não tem pressa no outono, nada vale a pena e tudo o que acontece é um lucro não conferido


A CRISE está feia e forte, acredito que para todos, ricos e pobres, os pobres sofrendo tudo, os ricos começando a penar, embora em termos decentes: chorar é ruim, mas dentro do próprio Mercedes é mais confortável do que chorar num Fusca ou no meio-fio da rua. Não faz muito tempo, um primeiro-ministro da Bélgica se demitiu, largou a vida pública e foi para casa, envergonhado. O motivo do seu vexame: o país estava com uma inflação de 6% ao ano e foi motivo para o sujeito não querer dar as caras.
Ainda bem que no Brasil temos outros critérios econômicos, financeiros e morais. Caso contrário, onde meteríamos tantas caras quebradas pelos nossos problemas? Não conheço nenhum caso de autoridade federal, estadual ou municipal que tenha pedido o boné por motivo tão fútil. Afinal, o Brasil é brasileiro e isso explica tudo.
Afinal, entramos no outono e o tempo costuma ser maravilhoso aqui no Rio, apesar de uma ou outra tempestade tardia, escombros da estação que passou. Gosto muito de abril: o céu é mais suave, continua azul e dourado, mas não há aquele calor metálico do verão. Também o mar é mais bonito nesta época do ano. Há menos gente na praia e o preço do coco, seguindo a lei da oferta e da procura, começa a baixar em algumas barracas.
Aquela empolgação estival, a obrigação das gentes e dos povos de estarem em tudo -isso ficou para trás, até que venha novo verão. Agora é curtir o outono, não sei por que, gosto mais do outono do que da primavera.
Afinal, estou dando uma de belga, pois essa de outono e primavera aqui no Rio é dose: temos uma única estação que, grosso modo, é quente e monótona o ano todo. Apesar disso, há pequenos câmbios de luz no mar, no céu, nas pessoas.
E o outono é tranquilo, sem pressa, sem dor, macio como o amor e os vícios que curtimos na hora certa. A carne do outono é doce, tranquila, uma carne macia, capaz de ser nossa.
Como acontece todos os anos, por capricho do calendário, a Páscoa cristã quase sempre coincide com a sua ancestral, a Páscoa judaica. Gosto do ritual que reúne a família judia em torno da mesa, velas acesas, e uma das crianças pergunta ao mais idoso: "Por que essa noite é diferente das outras noites?".
Para mim, que não sou judeu, esta é uma das perguntas mais bonitas da história do homem. A rigor, é uma pergunta que não precisa de resposta. Ela traz, dentro de si, a mensagem do Pessach: a noite diferente. No judaísmo, a Páscoa é a lembrança daquela noite em que os judeus decidiram fugir da escravidão no Egito e preferiram a liberdade do deserto, com suas pedras e tendas, ao cativeiro tranquilo, à escravidão humilhante, ao pão assegurado pelo opressor.
Os cristãos comemoram outro tipo de liberdade: a libertação do mal, que é o pecado. Infelizmente, não tenho religião nenhuma e isso me coloca em situação muito especial para achar bonita a noite dos judeus e a alvorada dos cristãos.
Sinceramente, gostaria de poder acreditar em tudo -mas o coração é mau, mau e meu, escravo de um faraó que nunca domei, de um pecado que sempre cometo.
Por isso mesmo prefiro a curtição do outono, tão azul aqui no Rio, o sol batendo no mar com a luz oblíqua e cor de ouro. E, ao cair da tarde, aquela aragem que chega de repente e arrepia a pele, trazendo o gosto de uma festa que acabou sem ter iniciado.
Já foi época em que também se comemorava, com discrição embora, o outono da vida. "Les sanglots longs des violons de l'automne" -a citação de Paul Verlaine é obrigatória, merece um soluço aqui dentro. Hoje se fala em terceira idade, não tem poesia, mas dá direito a viajar de graça no metrô e nos ônibus -privilégio que nunca usei por falta de oportunidade.
Outono é um tipo de Páscoa, nem manhã e já começo de noite, uma noite diferente que não se precisa explicar às crianças, uma Páscoa sem Deus, pagã e carnal, a vida não tem pressa no outono, nada vale a pena e tudo o que acontece é lucro, um lucro não lutado nem conferido, mas que acrescenta um pedaço de paz imerecida na insensata guerra dos vencidos.


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