São Paulo, sábado, 10 de abril de 2010

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Crítica/ "Coração Apertado"

Livro emula Kafka ao narrar perturbação de personagem

Marie Ndiaye cria mistério ao aliar irrealidade com história de estilo sóbrio

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Quase" é a palavra que ronda o romance "Coração Apertado", de Marie Ndiaye, ganhadora do Prêmio Goncourt em 2009. O leitor quase fica sabendo por que Nadia, a narradora, começa a ser subitamente perseguida e desprezada por Bordeaux inteira, a cidade onde nasceu e cresceu, inclusive por seus alunos. Quase se sabe quem esfaqueou e como ocorreu um ferimento grave em seu marido, Ange, com quem ela parecia partilhar um casamento harmonioso há muito tempo.
Quase ficamos sabendo quem é Noget, antes odiado pelo casal, mas que, ao longo da doença de Ange, é o único a tomar conta dele, alimentando-o (e também a Nadia) com comidas gordurosas, que parecem engordar a narradora a ponto de torná-la obesa mórbida.
Quase enxergamos Bordeaux, a cidade que também teima em sabotar a protagonista, prolongando inesperadamente a extensão das ruas, confundindo-se, como também a Nadia e ao leitor, numa permanente neblina que impede a visão e embaça a compreensão.
E da mesma forma que a palavra "quase" domina toda a narrativa, tudo também "parece" ser verdade. A reação das pessoas da cidade, desde os vizinhos tão amigos, até o comportamento dos bondes, parece realmente corresponder à sensação de Nadia -de que ela efetivamente está sendo perseguida sem qualquer explicação.
Mas, à medida que lemos as recordações e divagações da narradora (marcadas em itálico no texto), vamos percebendo que talvez haja mesmo razões para a perseguição.
Ela renegou os pais; flertou com Ange, mesmo estando casada com outro; talvez tenha se casado por desejo de ascensão social; tinha rompantes de ódio contra o filho que a adorava e, sobretudo, assumiam (ela e o marido) uma certa arrogância moral e ética diante de todos, deixando de assistir TV ou sequer de se informar sobre o mundo externo. A cidade parece monstruosa.
Mas Nadia, a aparente vítima, também se assemelha a um pequeno monstro. Será, então, que realmente a perseguem? Será que não é o seu passado que vem perturbá-la? Afinal, como é possível que Ange, com uma ferida purulenta e exposta, não morra? Como é possível que seu filho, que ela vai visitar, more com uma mulher que talvez seja antropófaga?
É nessa atmosfera de irrealidade mesclada a uma narrativa toda ela sóbria, seca e elegante, que o livro faz o leitor percorrer um caminho extremamente perturbador em sua quase revelação dos fatos.
"Quase" vem do latim "como se". Herdeira de Kafka, o "como se" de Marie Ndiaye também ativa, no leitor, um mundo de processos penais sem culpa nem pecado definidos.


CORAÇÃO APERTADO

Autor: Marie Ndiaye
Tradução: Paulo Neves
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 50 (272 págs.)
Avaliação: ótimo




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