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Crítica/ "Coração Apertado"
Livro emula Kafka ao narrar perturbação de personagem
Marie Ndiaye cria mistério ao aliar irrealidade com história de estilo sóbrio
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"Quase" é a palavra
que ronda o romance "Coração Apertado", de Marie Ndiaye, ganhadora do Prêmio Goncourt em 2009. O leitor quase fica sabendo por que
Nadia, a narradora, começa a
ser subitamente perseguida e
desprezada por Bordeaux inteira, a cidade onde nasceu e cresceu, inclusive por seus alunos.
Quase se sabe quem esfaqueou e como ocorreu um ferimento grave em seu marido,
Ange, com quem ela parecia
partilhar um casamento harmonioso há muito tempo.
Quase ficamos sabendo
quem é Noget, antes odiado pelo casal, mas que, ao longo da
doença de Ange, é o único a tomar conta dele, alimentando-o
(e também a Nadia) com comidas gordurosas, que parecem
engordar a narradora a ponto
de torná-la obesa mórbida.
Quase enxergamos Bordeaux, a cidade que também
teima em sabotar a protagonista, prolongando inesperadamente a extensão das ruas, confundindo-se, como também a
Nadia e ao leitor, numa permanente neblina que impede a visão e embaça a compreensão.
E da mesma forma que a palavra "quase" domina toda a
narrativa, tudo também "parece" ser verdade. A reação das
pessoas da cidade, desde os vizinhos tão amigos, até o comportamento dos bondes, parece
realmente corresponder à sensação de Nadia -de que ela efetivamente está sendo perseguida sem qualquer explicação.
Mas, à medida que lemos as
recordações e divagações da
narradora (marcadas em itálico
no texto), vamos percebendo
que talvez haja mesmo razões
para a perseguição.
Ela renegou
os pais; flertou com Ange, mesmo estando casada com outro;
talvez tenha se casado por desejo de ascensão social; tinha
rompantes de ódio contra o filho que a adorava e, sobretudo,
assumiam (ela e o marido) uma
certa arrogância moral e ética
diante de todos, deixando de
assistir TV ou sequer de se informar sobre o mundo externo.
A cidade parece monstruosa.
Mas Nadia, a aparente vítima,
também se assemelha a um pequeno monstro. Será, então,
que realmente a perseguem?
Será que não é o seu passado
que vem perturbá-la? Afinal,
como é possível que Ange, com
uma ferida purulenta e exposta, não morra? Como é possível
que seu filho, que ela vai visitar,
more com uma mulher que talvez seja antropófaga?
É nessa atmosfera de irrealidade mesclada a uma narrativa
toda ela sóbria, seca e elegante,
que o livro faz o leitor percorrer
um caminho extremamente
perturbador em sua quase revelação dos fatos.
"Quase" vem do latim "como
se". Herdeira de Kafka, o "como
se" de Marie Ndiaye também
ativa, no leitor, um mundo de
processos penais sem culpa
nem pecado definidos.
CORAÇÃO APERTADO
Autor: Marie Ndiaye
Tradução: Paulo Neves
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 50 (272 págs.)
Avaliação: ótimo
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