São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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CINEMA
Filme ambientado na Londres de 1748 conta a história de dois ladrões que se conhecem na prisão de Newgate
"Plunkett & Macleane" é século 18 hoje

SYLVIA COLOMBO
de Londres

O submundo é atemporal. "Plunkett & Macleane", comédia estrelada pela dupla de atores Robert Carlyle e Johnny Lee Miller (de "Trainspotting"), que acaba de estrear no Reino Unido, usa o cenário do século 18 inglês para contar uma aventura em um formato de entretenimento dos anos 90: edição de videoclipe, trilha sonora eletrônica, gírias e enredo romântico banal e despretensioso.
O filme se passa numa época em que o conceito de submundo urbano que conhecemos está justamente sendo configurado. O ano é 1748. Estamos às vésperas da Revolução Industrial, na Inglaterra; as cidades crescem e, com elas, os problemas sociais, a fome, a pobreza e a segregação dos excluídos.
É deste cancro da sociedade que emergem os dois heróis da aventura. Will Plunkett (Carlyle) e James Macleane (Miller) se encontram em um mesmo destino: os porões da temida prisão de Newgate.
O cárcere foi o celeiro de degredados que o Reino Unido enviou à América do Norte no período colonial. Daniel Defoe (1660-1731), autor de "Robinson Crusoé", também usou a cadeia para forjar a sua "Moll Flanders".
Em Newgate, Plunkett e Macleane selam um pacto e dali saem para barbarizar e assaltar a nobreza, mascarados e num galope marcado pelo ritmo da música tecno.
Isso mesmo, música tecno. O diretor da produção, Jake Scott, 33, (filho de Ridley Scott, de "Blade Runner") imprimiu ao filme uma edição moderna, identificada com a linguagem publicitária. A edição tem cortes rápidos, marcados por um baque sonoro ou por mudanças bruscas de cena. Abusa de metonímias e do zoom em imperfeições faciais dos atores (como a arcada dentária de Carlyle).
Também como a personagem Moll Flanders, o sonho é arrecadar dinheiro e partir para a América, terra prometida, onde poderiam se transformar em "gentlemen" (cavalheiros).
O interesse mútuo se desconecta quando Macleane conhece Lady Rebecca Gibson (Liv Tyler) num assalto dos dois ao tio da moça. Ela passa a sonhar com o homem mascarado e a colecionar reportagens de jornal sobre os bandidos, até descobrir sua real identidade.
As semelhanças com a peça "The Beggar's Opera", do poeta inglês John Gay (1685-1732) se desvelam a cada cena. No popular texto do século 18, também uma mulher se apaixona por um "highwayman", um assaltante de beira de estrada.
Mas "Plunkett & Macleane" não é um romance histórico e nem pretende ser mais do que simples entretenimento. Quem imaginar que terá uma aula sobre costumes do período georgiano vai se decepcionar. Erros históricos e anacronismos de linguagem e postura saltam aos olhos: a tatuagem moderna que Miller exibe numa cena de sexo, as gírias e palavrões do século 20 nas vozes de velhos bêbados em tavernas e até uma reclamação sobre o mau hálito (numa época em que isso devia ser regra e não exceção entre a população).
Mas o diretor Jake Scott explora em imagens fortes as cores daquele tempo: a lama dos cemitérios de indigentes, as tramas e nós da corda do enforcado, a lâmina do barbeiro de rua, o buraco da carabina, o sangue saindo das vísceras dos feridos, e por aí vai.
Mas como é que o engajado Robert Carlyle, das tramas políticas de Ken Loach, foi parar num filme de sábado à noite? O próprio ator admite que, nas entrelinhas de seu personagem, há uma questão de classe. Plunkett é o pobre ladrão com honra e coragem, e ensina isso ao vaidoso companheiro, mais interessado em comprar roupas e conquistar mulheres da sociedade.
O assalto à nobreza que os dois imprimem o tempo todo satiriza os símbolos da mesma (a doença venérea da mulher rica, o cálice de bebida que o nobre saboreia antes de cair morto). O filme descortina, casualmente até, contendas latentes da época. A Londres que cresce desordenadamente, e que cria no seu porão uma horda de desclassificados, inspirou neste período outras obras, além dos textos citados de John Gay e Daniel Defoe.
São dessa época as telas de William Hogarth (1697-1764), cheias de conteúdo político e moralista, e os romances de Henry Fielding (1707-1754). Preocupado com o problema do consumo de bebida entre a população mais pobre, Fielding observava que, se esta continuasse a se espalhar, logo não haveria mais quem a bebesse em toda a Inglaterra.
Num tempo em que todo o filme inglês quer "ser "Trainspotting"" e sobram produções com violência, música pop e submundo urbano, "Plunkett & Macleane", talvez até sem querer, se apropria, com um resultado positivo, de recursos usados pelos escritores populares do século 18, que é seu cenário, para atingir o objetivo.


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