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MARCELO COELHO
"Cronicamente Inviável" traz denúncia moral e desconforto
Garçons jogam restos de
comida no lixo. Fim de noite. Dois mendigos aparecem. Não
conseguimos ver bem os seus rostos, que se inclinam sobre as latas
e logo refocilam nos detritos.
Esta é uma das primeiras cenas
do filme "Cronicamente Inviável", de Sérgio Bianchi. O espectador se sente incomodado, claro, e
se pergunta se o filme todo seguirá esse tom de denúncia explícita.
Mas aí vem a primeira surpresa: uma voz em "off" começa a
criticar a cena. Diz algo como:
"Não, isso está muito explícito,
vamos refazer". Assistimos então
a uma variante do acontecimento
-não tão nojenta, mas talvez
ainda mais chocante.
O que era puro incômodo físico
para o espectador se torna, assim,
fonte de um desconforto intelectual: que diabo acontece neste filme, que nega, desfaz e refaz o que
acabava de ser apresentado? É esse jogo que torna "Cronicamente
Inviável" uma obra tão interessante.
"Interessante" é um adjetivo tímido. O filme é excelente, mas excelente de um jeito que os filmes
não costumam ser. Já assisti duas
vezes a "Cronicamente Inviável",
e ainda me sinto inseguro para
analisá-lo.
Melhor dizer o que o filme não
é. Vemos uma série de horrores
do cotidiano brasileiro -assaltos, miséria, devastação do meio
ambiente, violência policial- em
curtos quadros que entrelaçam
vários personagens. Mas o que se
denuncia não é exatamente uma
"situação social".
Falar em "situação social" pressupõe que ela possa ser mudada.
"Cronicamente Inviável", a partir
do próprio título, não parece ter
essa esperança. A denúncia do filme é sobretudo moral.
A dondoca atropela um menor
de rua. Sai do carro e nem se
preocupa em ver se o menino está
vivo ou morto: organiza apenas
um discurso para dizer que não
teve culpa de nada. A cena se repete, com outra dondoca, mais
adiante no filme. E quase todos os
personagens, na verdade, estão às
voltas com o mesmo problema: o
de livrar-se de qualquer responsabilidade pelos horrores que acontecem no país.
Crítica à burguesia? Novamente, o filme de Sérgio Bianchi puxa
o tapete do espectador. Pois as
"classes populares" não inspiram
nenhum discurso otimista. O policial, a gerente que teve infância
pobre, o líder sem-terra parecem
detestar, tanto quanto os ricos, a
classe de que se originam. Só parece haver solidariedade na
opressão.
Comentando várias cenas, temos a personagem de um antropólogo que viaja pelo Brasil -de
Salvador a Rondônia, dali a São
Paulo e a Porto Alegre.
Suas frases são de uma total incorreção política. Vendo o Carnaval da Bahia, ele considera que
naquele Estado inventaram a
mais perfeita forma de dominação: a felicidade. Diz algo como:
"Deixem o pessoal na miséria, toquem uma música e logo está todo mundo dançando".
Esses pensamentos "lapidares"
surgem a todo momento no filme,
oscilando entre o acinte, a constatação, o manifesto político e o
xingamento. São tantas as frases
desse tipo que terminamos sem
saber direito o que pensar.
De certo modo, a violência das
frases que aparecem em "Cronicamente Inviável" segue o mesmo
padrão das imagens: o filme desorienta o espectador porque não se
consegue nunca saber se o que se
diz, o que se mostra, é para ser entendido ao pé da letra ou como
ironia.
Se fosse ironia, cada barbaridade pronunciada estaria a esconder um outro ponto de vista, o
"certo", o das convicções do autor.
Mas é como se o filme mostrasse
todos os pontos de vista como "errados", sem que o "certo" seja ao
menos sugerido. O título de "Cronicamente Inviável" já sugere essa ambiguidade: tem um ar de ser
irônico, mas desconfiamos que é
isso mesmo o que o autor pensa
do Brasil.
Vem daí uma estrutura de documentário, uma frieza, talvez,
no registro isolado de cenas e
mais cenas aberrantes. Ao mesmo
tempo, o filme não é um documentário, não é um puro "registro". É como se tudo ali fosse real,
"demasiado real": tão verdadeiro a ponto de ser irreconhecível.
Irreconhecível não é o termo,
tampouco. Reconhecemos muito
bem o absurdo do país no que vemos na tela. Mas aí está a armadilha mais sutil deste filme: propondo-se como uma espécie de
caricatura, tende a suscitar a
reação de que, afinal, o diretor
está exagerando, as coisas não
são bem assim etc.
Dizer isso, entretanto, seria reproduzir exatamente o jogo da
má consciência que o filme denuncia o tempo todo. Cada personagem engana os outros e engana a si mesmo; o diretor engana o espectador o tempo todo,
mas parece dizer que, se propusesse qualquer "luz no fim do túnel", estaria fazendo mais uma
enganação.
Ninguém se salva, nem mesmo
o filme... O que o torna brilhante.
Do mesmo modo, o enredo de
"Cronicamente Inviável" é marcado por assaltos, desastres, ferimentos, contusões: os golpes e
contragolpes (na narrativa e no
corpo dos personagens) se sucedem. O que equivaleria a dizer,
bem brasileiramente, que entre
mortos e feridos salvam-se todos.
Esta parece ser, para Sérgio
Bianchi, a maior tragédia -e o
que torna o país, ao mesmo tempo, um objeto de sarcasmo e
compunção.
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