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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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"O HOMEM DUPLICADO"

Escritor polêmico diz que está para nascer o dia em que vai se calar

Saramago faz palestra em SP

IVAN FINOTTI
DA REPORTAGEM LOCAL

No retângulo que forma a janela do hotel cinco estrelas às costas do homem sentado à poltrona vê-se a marginal do rio Pinheiros e o engorgitamento da circulação automóvel, ou engarrafamento, se quisermos usar o termo corrente. O homem sentado chama-se José de Souza Saramago, nasceu na aldeia de Azinhaga, em Portugal, foi serralheiro, mecânico, desenhista industrial, funcionário público, editor, tradutor e jornalista, é escritor de profissão e tem oitenta anos, posto que à vista pareça menos idoso. Não está listado no rol das profissões deste homem, mas uma de suas atribuições mais frequentes tem sido a de criar controvérsias. A última delas começa assim, Até aqui cheguei, de agora em diante, Cuba seguirá seu caminho, e eu fico onde estou. O homem não quer debater o tema, dado que já disse o que pensava, mas anui em explicar por que só no ano de dois mil e três rompeu publicamente com o regime de Fidel Castro, Não, não considero a repressão um mal necessário, também não é fácil explicar o silêncio, pode-se considerar talvez, enfim, que a política obriga a muita coisa, que não é sempre limpa, não é sempre justa. Essas polêmicas geralmente lhe terminam caras e a razão é que o homem, por ser escritor, fará sua voz chegar mais longe. O fato de que venceu o prêmio Nobel de Literatura em mil novecentos e noventa e oito concede ainda mais abrangência a essas opiniões. Pois uma delas custou-lhe a pátria, quando o governo português censurou "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", em mil novecentos e noventa e dois, o homem abandonou a nação e foi morar na ilhota de Lanzarote, espanhola e vulcânica perdida no meio do Atlântico. Por outra idéia, mais recente, viu as vendas de seus livros despencarem em Israel, quando disse que o espírito de Auschwitz estava presente em Ramallah, Eu era o escritor estrangeiro mais lido em Israel, basta dizer que o romance que tinha publicado pouco antes, "Todos os Nomes", tinha vendido em um mês três mil exemplares, e no mês seguinte ainda se encontraram duzentos e trinta heróis que foram às livrarias comprá-lo. Mas, o que vai se fazer?, o homem sentado à poltrona com o retângulo às costas aprecia os embates e opina sobre o que lhe dá na telha, Ainda está por nascer o dia em que eu calo o que estou a pensar.
Promessa é promessa, realidade é realidade, mas não acho que ele tenha se desviado do caminho. Essas opiniões já são sobre outros objetos, o governo de Luiz Inácio da Silva e o Brasil. É por uma palestra sobre sua última obra, "O Homem Duplicado", que o notável escritor chegou mais uma vez a este país, e ela vai ter lugar na rua Orobó duzentos e setenta e sete, onde está o teatro do Colégio Santa Cruz, às vinte horas da próxima segunda-feira. Mas essas informações pouco ou de nada importam, já que quem conseguiu o convite gratuito tem o endereço e a data nele impressos, e quem não o obteve, não poderá comparecer, dado que os seiscentos ingressos foram esgotados em um dia e meio, anteontem. Sobre o Brasil, o homem de oitenta anos tem ainda algumas preferências e sugestões a fazer, Para estar contente não tem que ter uma data especial, por isso não comemoro aniversários e não gosto do Carnaval que quer obrigar todos a estarem felicíssimos naquele dia. Mas Saramago não é assim tão casmurro e elogia, com ressalvas, outro produto nacional, Gosto de algo que vocês têm, mas que não sabem aproveitar, cometem o erro, do meu ponto de vista gravíssimo, de porem demasiado açúcar no guaraná, o refrigerante é demasiado doce, tirem uma parte do açúcar e já verão se o guaraná não é uma bebida muito mais saborosa do que qualquer coca-cola, e ele não chega em Lanzarote, mas eu durante muito tempo tomei o guaraná em pó, e agora que estou a falar disso, estou a perguntar a mim mesmo por que eu o deixei, talvez há uns dois anos ou três, e nesse momento estou a decidir que vou voltar ao guaraná, Em pó.


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