São Paulo, quarta-feira, 10 de maio de 2006

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MARCELO COELHO

Celulares explosivos, idéias nem tanto

Considero-me um razoável respondedor de e-mails, mas tenho cada vez mais preguiça com recados no telefone fixo e sou uma nulidade no uso do celular. Mal conheço a senha para tirar as mensagens lá de dentro e, pelo que vejo, meu aparelho é forte candidato a uma dessas explosões que têm acontecido ultimamente.
Sou dos que deixam o celular carregando o tempo todo, o que segundo a Folha de domingo é fator de risco para o usuário. Mas como fazer diferente? Basta eu ligar que já vem o aviso: carga baixa da bateria. Imagino, pelo menos, que de tão fraca a voltagem não haverá de ser violenta a explosão.
E, como todo mundo, não disponho em casa de um número suficiente de tomadas. Um serpentário de fios busca em poucos benjamins seu alimento. Isso, dizem os especialistas, também deixa o celular meio nervosinho.
Pinóquio não primava pela responsabilidade nos compromissos assumidos, mas seu Grilo Falante, de cartola e guarda-chuva, conhecia as virtudes da polidez e da adequação. Não tomava a palavra antes de um minúsculo pigarro de advertência.
Inseto mutante, o celular está para o grilo de Pinóquio um pouco como a guitarra elétrica para o antigo violão. Adota os tons mais estridentes, descabelados e imperativos, a que as pessoas obedecem numa coreografia alucinada. A pose mais estudada da grã-fina se estilhaça em aflição e pânico enquanto ela remexe na bolsa à procura do aparelho; o taxista mais inerte e distraído pula ao menor toque, como se tivesse uma aranha dentro do carro. E nem se sabia que aquilo era carregado de dinamite.
Definitivamente, prefiro o e-mail, cerimonioso, sedentário e reflexivo. As menores inflexões de um texto traduzem movimentos de amuo ou simpatia, delicadeza ou apreensão. Respondo quando quiser; mas respondo sempre, ou quase sempre.
Por isso mesmo não me conformo quando as pessoas ignoram os e-mails que envio. Já estão ali mesmo, na frente do computador... o que custa? Passei a usar uma "ferramenta", como dizem no Outlook, que julgo das mais antipáticas -"acusar recebimento de mensagem". Mas não adianta muito. Ofendido, o destinatário pode clicar que sim, e daí fechar-se em silêncio para sempre; ou que não, mandando-me uma soberaníssima e discreta "banana" eletrônica.
Mas não tenho moral para reclamar. Se não dou bola para os recados que me deixam no telefone explosivo, cumpre-me entender quem despreza meus e-mails. Talvez a humanidade se divida mesmo entre "outlookistas" e "celulantes", entre "móveis" e "fixos", adeptos do escrito ou do falado, do lento ou do imediato.
Com um elemento complicador, trazido pela tecnologia recente: com os palm-tops e coisas do gênero, é perfeitamente possível aos membros da família "móvel" ler os seus e-mails em trânsito, deixando-os para responder depois, isto é, nunca.
Não prossigo nesse campo, estrangeiro para mim. Queria na verdade falar de outro assunto, embora correlato. Tenho ouvido de professores, psicanalistas e intelectuais em geral uma queixa constante, que faz do desleixo com e-mails algo como a ponta de um iceberg.
É mais ou menos assim. Pedem para a pessoa um artigo ou convidam-na para um debate; precisam com urgência de um parecer, de uma colaboração num livro. O professor responde, entrega o texto, cumpre com o que tinha de fazer.
E, então, nada acontece. O livro não sai, o artigo é recebido sem comentário, a mesa-redonda até que se realiza, mas cada participante disse coisas totalmente alheias ao tema proposto, que aliás era dos mais vagos, ninguém ouviu o que o outro disse e o público fez perguntas que não tinham nada a ver.
Algum tempo depois, estará sendo organizada uma outra semana disso ou daquilo, uma outra jornada assim ou assado, um novo número da revista tal ou qual, e-mails serão trocados, papéis serão preenchidos, cadeiras serão ocupadas, e as mesas-redondas continuarão, girando, como tudo, no vazio.
Haveria assim um fenômeno de "falta de resposta" que vai além da simples etiqueta eletrônica. Imagino se não passa a existir, no mundo intelectual e acadêmico, a mesma febre dos "eventos" que toma conta da área empresarial e cultural mais ampla.
No filme "O Príncipe", de Ugo Giorgetti, um personagem oportunista comemorava o fato de a cultura ter virado bom negócio no país: o segredo, dizia ele, era "promover eventos". Mesmo sem virar bom negócio, também na área da produção intelectual a mesma coisa parece acontecer.
Não importa o que foi dito no seminário, mas que o seminário tenha sido feito. Não importa que tal revista seja lida, mas que seu novo número saia no prazo previsto. Há livros que não são propriamente livros, mas "livros-evento", com autores no papel de convidados.
Basta ver, aliás, a Bienal do Livro para perguntar se o número dos visitantes que atrai não é maior que o de leitores que conquista; e mesmo a Flip, de que só ouço falar bem, responde a uma vocação gregária que me custa a conciliar com a experiência individual da leitura.
O espetáculo -ou o cumprimento de alguma meta burocrática na universidade- substitui, em certa medida, o debate de idéias. Também, pudera: que idéias? Num círculo vicioso, as pessoas são instadas a contribuir com mais produtos, textos e falas do que as teses que teriam a propor; não dispõem de tempo para novas leituras nem para rever o que já pensaram.
Será exagero meu? No Congresso Tal e Tal, um conferencista toma a palavra, ocupa o tempo, termina deixando em aberto questões que mal definiu. Na platéia, o silêncio é completo.
Não. Corrijo-me. Está tocando um celular.

@ - coelhofsp@uol.com.br


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