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NINA HORTA
Uma avó para ser lembrada
Era uma mulher rude, rígida e determinada.
Mas me ensinou refinamentos preciosos
OS LEITORES às vezes me premiam com um e-mail que vale por um bifinho -ou por
uma crônica. Acho que esta avó do
Walter Tassi merece ser lembrada
no Dia das Mães.
"Minha poderosa avó materna,
uma italiana dura, analfabeta e sábia, às vezes me pegava pela mão e
me levava a conhecer o mercado e a
cidade. Sustentou meu avô doente
num leprosário durante 15 anos,
comprou duas casas e criou duas filhas. Se arranjou sozinha, sem nunca casar novamente. Não é pouca
coisa para quem vivia de pegar um
carrinho de mão nas margens do rio
Pinheiros e caminhar até o mercado
grande no centro de São Paulo para
enchê-lo de frutas e verduras e depois voltar vendendo de porta em
porta. No domingo, dia de jogo no
estádio do Pacaembu, comprava um
saco de amendoim, torrava e ia vendê-lo em pacotinhos aos freqüentadores.
Era uma mulher rude, rígida e determinada. Trabalhava dia e noite.
Mas me ensinou refinamentos preciosos, como dessalgar um arenque
defumado banhando-o em vinagre,
fazer pão caseiro e macarrão italiano. Para ela, eu era o rei. E assim fui
tratado. Quando tinha alguma coisa
gostosa só para um, era para mim.
Mesmo na nossa pobreza, conseguiu me fazer estudar em um colégio religioso, pago, me consultava
para ouvir minha opinião sobre as
coisas e me tratava mais como homem que como criança. Nem sempre eu soube disso. De sua boca, ouvi
durante toda a vida palavras como
honra, moral, dignidade, honestidade e generosidade. Faz tempo que
essas palavras não aparecem mais
nos jornais ou no noticiário. Pode
procurar. Não tem mais. Nem nas
conversas. Parece não haver mais
razão para usá-las. Receio que junto
das palavras esteja desaparecendo o
próprio conceito.
Nesse tempo, entre as ruas cheias
de restos de verduras e frutas, às vezes ela me levava a algum restaurante pobre e simples ao redor do mercado. Eram os chamados "frege moscas". E nesses pobres restaurantes
não havia cardápio. Cardápio para
quê? A maioria dos clientes, pobres
carregadores, como ela mesma, não
sabia ler. O garçom, de colete ensebado e lustroso, com um pano de
pratos jogado sobre o ombro, revirando os olhos pelo ambiente, recitava meia dúzia de pratos enquanto
mascava um palito e coçava a virilha.
Ouvíamos a ladainha, ela me ouvia,
escolhia alguma coisa e comíamos
juntos. Eu olhava os quadros antigos
nas paredes, os retratos ancestrais e
silenciosos a espiar os clientes, as tiras de papel crepom cruzando o teto
cheio de moscas e se encontrando
na solitária lâmpada central. A pequena prateleira com bebidas empoeiradas, os furos na toalha, as
manchas de comidas passadas, o copo opaco de gordura. E ficava encantado com tudo aquilo.
A fumaça do fogão à lenha se esgueirava para o acanhado e abafado
salão, filtrando o sol de tempos menos poluídos, criando uma atmosfera especial. Homens nus da cintura
para cima se agitavam suarentos no
calor sufocante da pequena cozinha.
Diziam-se limpos pelo fato de banharem-se o dia todo no próprio
suor. Um pano de cor indefinida, endurecido pelo tempo e impermeável
pela falta de limpeza, enxugava o
suor e limpava a borda dos pratos.
Na rua, ao lado da porta, o dono do
"frege moscas" colocava uma pequena churrasqueira a carvão onde grelhava bifes de fígado e cebolas,
atraindo, pelo cheiro, os transeuntes. Lembro que tudo isso, incompreensivelmente, era bom.
Uma noite, quando dona Vicentina, já muito velha e com dificuldade
para caminhar, quis dirigir-se ao seu
quarto, meu pai perguntou se ela
queria que ele a carregasse nos braços. A dura italiana respondeu que
quando alguém precisasse carregá-la, preferiria morrer. Lentamente
subiu a escada sem amparo, chegou
ao topo e morreu. Simples e direta
como sempre fora."
ninahorta@uol.com.br
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