São Paulo, quinta-feira, 10 de maio de 2007

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NINA HORTA

Uma avó para ser lembrada

Era uma mulher rude, rígida e determinada. Mas me ensinou refinamentos preciosos

OS LEITORES às vezes me premiam com um e-mail que vale por um bifinho -ou por uma crônica. Acho que esta avó do Walter Tassi merece ser lembrada no Dia das Mães.
"Minha poderosa avó materna, uma italiana dura, analfabeta e sábia, às vezes me pegava pela mão e me levava a conhecer o mercado e a cidade. Sustentou meu avô doente num leprosário durante 15 anos, comprou duas casas e criou duas filhas. Se arranjou sozinha, sem nunca casar novamente. Não é pouca coisa para quem vivia de pegar um carrinho de mão nas margens do rio Pinheiros e caminhar até o mercado grande no centro de São Paulo para enchê-lo de frutas e verduras e depois voltar vendendo de porta em porta. No domingo, dia de jogo no estádio do Pacaembu, comprava um saco de amendoim, torrava e ia vendê-lo em pacotinhos aos freqüentadores.
Era uma mulher rude, rígida e determinada. Trabalhava dia e noite. Mas me ensinou refinamentos preciosos, como dessalgar um arenque defumado banhando-o em vinagre, fazer pão caseiro e macarrão italiano. Para ela, eu era o rei. E assim fui tratado. Quando tinha alguma coisa gostosa só para um, era para mim.
Mesmo na nossa pobreza, conseguiu me fazer estudar em um colégio religioso, pago, me consultava para ouvir minha opinião sobre as coisas e me tratava mais como homem que como criança. Nem sempre eu soube disso. De sua boca, ouvi durante toda a vida palavras como honra, moral, dignidade, honestidade e generosidade. Faz tempo que essas palavras não aparecem mais nos jornais ou no noticiário. Pode procurar. Não tem mais. Nem nas conversas. Parece não haver mais razão para usá-las. Receio que junto das palavras esteja desaparecendo o próprio conceito.
Nesse tempo, entre as ruas cheias de restos de verduras e frutas, às vezes ela me levava a algum restaurante pobre e simples ao redor do mercado. Eram os chamados "frege moscas". E nesses pobres restaurantes não havia cardápio. Cardápio para quê? A maioria dos clientes, pobres carregadores, como ela mesma, não sabia ler. O garçom, de colete ensebado e lustroso, com um pano de pratos jogado sobre o ombro, revirando os olhos pelo ambiente, recitava meia dúzia de pratos enquanto mascava um palito e coçava a virilha.
Ouvíamos a ladainha, ela me ouvia, escolhia alguma coisa e comíamos juntos. Eu olhava os quadros antigos nas paredes, os retratos ancestrais e silenciosos a espiar os clientes, as tiras de papel crepom cruzando o teto cheio de moscas e se encontrando na solitária lâmpada central. A pequena prateleira com bebidas empoeiradas, os furos na toalha, as manchas de comidas passadas, o copo opaco de gordura. E ficava encantado com tudo aquilo.
A fumaça do fogão à lenha se esgueirava para o acanhado e abafado salão, filtrando o sol de tempos menos poluídos, criando uma atmosfera especial. Homens nus da cintura para cima se agitavam suarentos no calor sufocante da pequena cozinha.
Diziam-se limpos pelo fato de banharem-se o dia todo no próprio suor. Um pano de cor indefinida, endurecido pelo tempo e impermeável pela falta de limpeza, enxugava o suor e limpava a borda dos pratos.
Na rua, ao lado da porta, o dono do "frege moscas" colocava uma pequena churrasqueira a carvão onde grelhava bifes de fígado e cebolas, atraindo, pelo cheiro, os transeuntes. Lembro que tudo isso, incompreensivelmente, era bom. Uma noite, quando dona Vicentina, já muito velha e com dificuldade para caminhar, quis dirigir-se ao seu quarto, meu pai perguntou se ela queria que ele a carregasse nos braços. A dura italiana respondeu que quando alguém precisasse carregá-la, preferiria morrer. Lentamente subiu a escada sem amparo, chegou ao topo e morreu. Simples e direta como sempre fora."


ninahorta@uol.com.br

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