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"Leitor atual não está mais isolado"
Piglia destaca a retomada do conceito de um leitor intermitente, imaginado nos anos 20 pelo argentino Macedonio Fernández
Escritor afirma que momento de "experiência da leitura", de fragmentação e interação, pode beneficiar o conto e a poesia
Roberto Pera - 30.abr.2008/Folha Imagem
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O argentino, professor de literatura de Princeton, em sua casa em Buenos Aires
SYLVIA COLOMBO
EM BUENOS AIRES
Você não consegue se concentrar muito tempo numa leitura? Quando entra na internet, abre várias telas ao mesmo
tempo e muda a direção de sua
atenção freqüentemente?
Não se desespere. O fato de
estar divagando entre diferentes universos não é necessariamente algo ruim. Para o escritor argentino Ricardo Piglia,
66, trata-se apenas de um novo
momento da "experiência da
leitura". Situação cujas conseqüências, porém, ainda desconhecemos.
De passagem pela Argentina,
onde abriu a 34ª Feria Internacional del Libro (que vai até a
próxima segunda-feira, dia 12),
o professor de literatura de
Princeton disse que o leitor que
assume a interrupção como
parte da narrativa já foi antecipado por seu conterrâneo Macedonio Fernández (1874-1952), considerado principal
inspirador de Jorge Luiz Borges (1899-1986), com o conceito de "lector salteado" -um leitor intermitente, que pula de
um assunto para outro ou se
dispersa facilmente.
Leia trechos da entrevista
que Piglia deu à Folha em sua
casa, em Buenos Aires, onde
passa parte do ano, quando está de férias de suas temporadas
de aulas nos EUA.
FOLHA - O sr. diz que Macedonio
Fernández teria antecipado a idéia
de um leitor que é obrigado a assumir a interrupção como parte da leitura. Ele adiantou o que é nosso hábito hoje?
RICARDO PIGLIA - O conceito de
"lector salteado" foi criado por
Macedonio nos anos 20, em um
livro chamado "Museo de la
Novela de la Eterna". Ali, estabelece uma série de categorias
de leitores. Entre eles, está o
"lector salteado". É um retrato
do leitor atual, que já não é
aquele que está isolado, concentrado e lutando contra a interrupção. Mas sim que entra e
sai do texto, se move, interage
com o que está ao redor, vai de
um livro a outro ou a outros
textos mais rápidos que lhe surgem pela internet. É um leitor
que assume a interrupção como parte da narrativa.
Macedonio captou o processo que ia se desenvolver e que
levaria à fragmentação da experiência da leitura, que supõe
um corte com a lógica linear da
significação. Isso não seria algo
negativo, a princípio, mas um
novo tipo de situação de leitura.
FOLHA - Esse novo panorama seria
mais receptivo a formatos clássicos
da literatura latino-americana, como o conto?
PIGLIA - Sim, pode haver essa
tendência. Não acho que formas e técnicas anulam as anteriores, e é claro que os romances tradicionais continuarão
sendo lidos. Mas é provável que
o conto tenha uma dinâmica
mais conectada com essa mecânica de viragem rápida da significação que é oferecida por
meios como a internet. Sobretudo quando se leva em consideração a cena que rodeia a leitura. É muito comum hoje que
alguém leia enquanto a televisão está ligada e se está esperando e-mails, por exemplo.
FOLHA - A poesia também parece
se ajustar bem à velocidade do trânsito de textos pela internet. Os poetas perceberão isso?
PIGLIA - Sim, poesia e internet
têm tudo a ver, mas hoje ainda
parecem antagônicos, pois os
poetas não descobriram que
podem usar essa dinâmica. Porém, a internet oferece mensagens em várias temporalidades,
o que provoca uma disputa pela
eficácia do significado. Enquanto o mundo da imagem está em primeiro plano, porque
tem a faculdade de acelerar a
complexidade e a aceleração da
informação, a leitura sempre
vai supor uma pausa para um
deciframento mais pessoal.
Hoje o acesso a uma quantidade imensa de textos foi facilitada, mas o momento da leitura
tem uma temporalidade que
depende do comportamento do
homem. Ela tem um tempo
próprio que as máquinas não
podem alterar.
FOLHA - Em entrevista recente ao
"Clarín", o sr. disse que as letras de
tango também caberiam nessa nova dimensão da leitura, mais fragmentada.
PIGLIA - Sim, porque expõem
um drama que sucede em um
espaço curto. Mas também
creio que, apesar de ter a sobrevivência garantida, novos tangos jamais poderão causar o
mesmo efeito que provocaram
entre o princípio dos anos 20 e
o final dos 50. Foi um fenômeno extraordinário. Lembro-me
de que, quando tinha 15 anos, ia
dançar no mesmo lugar que
meus pais, meus tios. Eram
grandes bailes populares. Pela
sua dimensão, deram razão à
existência de grandes orquestras e cantores, porque deles
dependiam a sustentação desses eventos.
As gerações não estavam separadas por culturas diferenciadas. Até que apareceu o rock.
Com o jazz, deu-se algo parecido. Depois do rock, o jazz como
experiência popular acabou.
Tanto o jazz como o tango passaram a ser uma espécie de música para intelectuais, mais codificada. Astor Piazzolla [1921-1992], que não fazia música para dançar, é a expressão mais
clara desse tipo de tango.
FOLHA - Em 2010, serão comemorados os 200 anos do início das revoluções de independência na América Latina. Quais questões acha pertinente virem à tona?
PIGLIA - Em primeiro lugar,
nossa relação cultural com a
Espanha, que tem uma política
deliberada de presença por
aqui. Hoje os escritores latino-americanos só fazem encontros em Madri ou Barcelona. E
temos mais chances de êxito se
os nossos livros saem por selos
espanhóis.
Em segundo, deveríamos
ampliar nossa visão do que é o
continente, incluindo áreas
que costumamos esquecer, o
Caribe, a América Latina de língua inglesa e, o mais grave, o
Brasil, que muitas vezes vemos
como um lugar à parte.
A tão falada unidade latino-americana é uma questão política, que está relacionada a nossa origem comum, mas, em termos de cultura, devemos entender que o que existe são
áreas distintas, como a que
abriga a tradição afro-americana no Brasil, a do Rio da Prata, a
da região andina e a do Caribe.
Saber como se articulam essas
tradições e experiências enriqueceria o modo como enxergamos a nós mesmos.
FOLHA - O sr. trabalha há algum
tempo num romance sobre a Guerra
das Malvinas, "Blanco Nocturno", e
o episódio voltou ao debate recentemente, com a efeméride de 25 anos.
Como o sr. a viu na época?
PIGLIA - Foi terrível porque
sentimos como a ditadura teve
a capacidade de tomar uma
questão que fazia parte da tradição histórica argentina e
transformá-la em instrumento
de propaganda. O regime conseguiu dar um sentido coletivo,
ideológico e político à necessidade da guerra. Ao mesmo tempo, assistimos com assombro as
conseqüências. Em Buenos Aires, sentia-se uma euforia bélica que levou consigo a esquerda
e a direita, unidas num mesmo
discurso nacionalista.
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