São Paulo, sábado, 10 de maio de 2008

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"Leitor atual não está mais isolado"

Piglia destaca a retomada do conceito de um leitor intermitente, imaginado nos anos 20 pelo argentino Macedonio Fernández

Escritor afirma que momento de "experiência da leitura", de fragmentação e interação, pode beneficiar o conto e a poesia


Roberto Pera - 30.abr.2008/Folha Imagem
O argentino, professor de literatura de Princeton, em sua casa em Buenos Aires

SYLVIA COLOMBO
EM BUENOS AIRES

Você não consegue se concentrar muito tempo numa leitura? Quando entra na internet, abre várias telas ao mesmo tempo e muda a direção de sua atenção freqüentemente? Não se desespere. O fato de estar divagando entre diferentes universos não é necessariamente algo ruim. Para o escritor argentino Ricardo Piglia, 66, trata-se apenas de um novo momento da "experiência da leitura". Situação cujas conseqüências, porém, ainda desconhecemos.
De passagem pela Argentina, onde abriu a 34ª Feria Internacional del Libro (que vai até a próxima segunda-feira, dia 12), o professor de literatura de Princeton disse que o leitor que assume a interrupção como parte da narrativa já foi antecipado por seu conterrâneo Macedonio Fernández (1874-1952), considerado principal inspirador de Jorge Luiz Borges (1899-1986), com o conceito de "lector salteado" -um leitor intermitente, que pula de um assunto para outro ou se dispersa facilmente.
Leia trechos da entrevista que Piglia deu à Folha em sua casa, em Buenos Aires, onde passa parte do ano, quando está de férias de suas temporadas de aulas nos EUA.

 

FOLHA - O sr. diz que Macedonio Fernández teria antecipado a idéia de um leitor que é obrigado a assumir a interrupção como parte da leitura. Ele adiantou o que é nosso hábito hoje?
RICARDO PIGLIA
- O conceito de "lector salteado" foi criado por Macedonio nos anos 20, em um livro chamado "Museo de la Novela de la Eterna". Ali, estabelece uma série de categorias de leitores. Entre eles, está o "lector salteado". É um retrato do leitor atual, que já não é aquele que está isolado, concentrado e lutando contra a interrupção. Mas sim que entra e sai do texto, se move, interage com o que está ao redor, vai de um livro a outro ou a outros textos mais rápidos que lhe surgem pela internet. É um leitor que assume a interrupção como parte da narrativa. Macedonio captou o processo que ia se desenvolver e que levaria à fragmentação da experiência da leitura, que supõe um corte com a lógica linear da significação. Isso não seria algo negativo, a princípio, mas um novo tipo de situação de leitura.

FOLHA - Esse novo panorama seria mais receptivo a formatos clássicos da literatura latino-americana, como o conto?
PIGLIA
- Sim, pode haver essa tendência. Não acho que formas e técnicas anulam as anteriores, e é claro que os romances tradicionais continuarão sendo lidos. Mas é provável que o conto tenha uma dinâmica mais conectada com essa mecânica de viragem rápida da significação que é oferecida por meios como a internet. Sobretudo quando se leva em consideração a cena que rodeia a leitura. É muito comum hoje que alguém leia enquanto a televisão está ligada e se está esperando e-mails, por exemplo.

FOLHA - A poesia também parece se ajustar bem à velocidade do trânsito de textos pela internet. Os poetas perceberão isso?
PIGLIA
- Sim, poesia e internet têm tudo a ver, mas hoje ainda parecem antagônicos, pois os poetas não descobriram que podem usar essa dinâmica. Porém, a internet oferece mensagens em várias temporalidades, o que provoca uma disputa pela eficácia do significado. Enquanto o mundo da imagem está em primeiro plano, porque tem a faculdade de acelerar a complexidade e a aceleração da informação, a leitura sempre vai supor uma pausa para um deciframento mais pessoal. Hoje o acesso a uma quantidade imensa de textos foi facilitada, mas o momento da leitura tem uma temporalidade que depende do comportamento do homem. Ela tem um tempo próprio que as máquinas não podem alterar.

FOLHA - Em entrevista recente ao "Clarín", o sr. disse que as letras de tango também caberiam nessa nova dimensão da leitura, mais fragmentada.
PIGLIA
- Sim, porque expõem um drama que sucede em um espaço curto. Mas também creio que, apesar de ter a sobrevivência garantida, novos tangos jamais poderão causar o mesmo efeito que provocaram entre o princípio dos anos 20 e o final dos 50. Foi um fenômeno extraordinário. Lembro-me de que, quando tinha 15 anos, ia dançar no mesmo lugar que meus pais, meus tios. Eram grandes bailes populares. Pela sua dimensão, deram razão à existência de grandes orquestras e cantores, porque deles dependiam a sustentação desses eventos. As gerações não estavam separadas por culturas diferenciadas. Até que apareceu o rock. Com o jazz, deu-se algo parecido. Depois do rock, o jazz como experiência popular acabou. Tanto o jazz como o tango passaram a ser uma espécie de música para intelectuais, mais codificada. Astor Piazzolla [1921-1992], que não fazia música para dançar, é a expressão mais clara desse tipo de tango.

FOLHA - Em 2010, serão comemorados os 200 anos do início das revoluções de independência na América Latina. Quais questões acha pertinente virem à tona?
PIGLIA
- Em primeiro lugar, nossa relação cultural com a Espanha, que tem uma política deliberada de presença por aqui. Hoje os escritores latino-americanos só fazem encontros em Madri ou Barcelona. E temos mais chances de êxito se os nossos livros saem por selos espanhóis. Em segundo, deveríamos ampliar nossa visão do que é o continente, incluindo áreas que costumamos esquecer, o Caribe, a América Latina de língua inglesa e, o mais grave, o Brasil, que muitas vezes vemos como um lugar à parte. A tão falada unidade latino-americana é uma questão política, que está relacionada a nossa origem comum, mas, em termos de cultura, devemos entender que o que existe são áreas distintas, como a que abriga a tradição afro-americana no Brasil, a do Rio da Prata, a da região andina e a do Caribe. Saber como se articulam essas tradições e experiências enriqueceria o modo como enxergamos a nós mesmos.

FOLHA - O sr. trabalha há algum tempo num romance sobre a Guerra das Malvinas, "Blanco Nocturno", e o episódio voltou ao debate recentemente, com a efeméride de 25 anos. Como o sr. a viu na época?
PIGLIA
- Foi terrível porque sentimos como a ditadura teve a capacidade de tomar uma questão que fazia parte da tradição histórica argentina e transformá-la em instrumento de propaganda. O regime conseguiu dar um sentido coletivo, ideológico e político à necessidade da guerra. Ao mesmo tempo, assistimos com assombro as conseqüências. Em Buenos Aires, sentia-se uma euforia bélica que levou consigo a esquerda e a direita, unidas num mesmo discurso nacionalista.


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