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RODAPÉ LITERÁRIO
A rua e a biblioteca
Nem todo horror é novidade, nem toda novidade é nova, nos dias de hoje, logo, nem toda vida dá um romance
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
DE PASSAGEM por Buenos Aires, durante conferência no
Museu de Arte Latino-Americano, no último domingo, Tom
Wolfe ("A Fogueira das Vaidades"),
o mais janota dos mentores do "new
journalism", nem se preocupou em
ser original no diagnóstico.
Lembrou que legiões de jovens
escritores americanos deram com
os burros n'água na tentativa de copiar Jorge Luis Borges e, engrossando o coro dos que lamentam a agonia do romance e sua morte iminente, reclamou dos escritores mais
contato com o mundo. Poetas,
saiam do quarto e "vão tropeçar em
coisas que nunca pensavam que poderiam ver".
A receita já estava em Balzac: os
detalhes concretos que fazem a boa
literatura afloram de uma "submersão na vida do outro", em que psicologia e contexto social se combinam.
Mas a defesa de um vitalismo sem
contornos e imediatista, do tipo
"quem viver, verá e dirá", está longe
de ser sua conseqüência necessária.
Como atestam uma legião de heróis modernos, do Hamm beckettiano ao Bartleby de Melville, nem todo
horror é novidade, nem toda novidade é nova, nos dias de hoje, logo,
nem toda vida dá um romance.
Por ironia involuntária, a prova
mais cabal é justamente a obra do
santo caseiro invocada por Wolfe
entre argentinos. A metafísica da
criação está tão entranhada na personalidade literária de Jorge Luis
Borges que os próprios títulos de sua
obra a expressam. É o caso de "Ficções", de 1944, e "O Aleph", de 1949,
recém-lançado no Brasil, como parte do projeto Biblioteca Borges, edição em novas e apuradas traduções
de sua obra completa.
Em meio à ressaca moral do século, no estilo limpo e quase clássico
do autor, afeito à forma dos paradoxos, os contos das duas coletâneas
-incluindo textos célebres, como
"Pierre Menard, o Autor do Quixote", "Funes, o Memorioso", "O
Imortal" e "Biografia de Tadeo Isidoro Cruz", que afirmaram a singularidade da voz borgiana nas letras
mundiais- multiplicam passagens
labirínticas, abrindo seu quarto-biblioteca, aparentemente encerrado
no universo do mito, ao tempo e à
história.
Como para o protagonista de "As
Ruínas Circulares", o "projeto mágico" de Borges (sonhar minuciosa e
metodicamente o homem) implica
um constante oscilar entre os pólos
da invenção e da observação, dimensão central do problema do criador
moderno. A tópica do sonho, a presença fractal da obra dentro da obra,
o tema do teatro do mundo, a realidade entendida como jogo e representação, são recursos que lhe servem para suspender provisoriamente as fronteiras entre ficção e
narrativa histórica, maneiras diversas de trabalhar a ilusão humana.
E, para ir ao encontro dessa experiência, Borges mostra que, ao contrário do que defende Wolfe, o caminho mais curto nem sempre é a porta da rua.
O ALEPH
Autor: Jorge Luis Borges
Tradução: Davi Arrigucci Jr.
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33 (158 págs.)
Avaliação: ótimo
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