São Paulo, sábado, 10 de maio de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

A rua e a biblioteca

Nem todo horror é novidade, nem toda novidade é nova, nos dias de hoje, logo, nem toda vida dá um romance

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

DE PASSAGEM por Buenos Aires, durante conferência no Museu de Arte Latino-Americano, no último domingo, Tom Wolfe ("A Fogueira das Vaidades"), o mais janota dos mentores do "new journalism", nem se preocupou em ser original no diagnóstico.
Lembrou que legiões de jovens escritores americanos deram com os burros n'água na tentativa de copiar Jorge Luis Borges e, engrossando o coro dos que lamentam a agonia do romance e sua morte iminente, reclamou dos escritores mais contato com o mundo. Poetas, saiam do quarto e "vão tropeçar em coisas que nunca pensavam que poderiam ver".
A receita já estava em Balzac: os detalhes concretos que fazem a boa literatura afloram de uma "submersão na vida do outro", em que psicologia e contexto social se combinam. Mas a defesa de um vitalismo sem contornos e imediatista, do tipo "quem viver, verá e dirá", está longe de ser sua conseqüência necessária. Como atestam uma legião de heróis modernos, do Hamm beckettiano ao Bartleby de Melville, nem todo horror é novidade, nem toda novidade é nova, nos dias de hoje, logo, nem toda vida dá um romance.
Por ironia involuntária, a prova mais cabal é justamente a obra do santo caseiro invocada por Wolfe entre argentinos. A metafísica da criação está tão entranhada na personalidade literária de Jorge Luis Borges que os próprios títulos de sua obra a expressam. É o caso de "Ficções", de 1944, e "O Aleph", de 1949, recém-lançado no Brasil, como parte do projeto Biblioteca Borges, edição em novas e apuradas traduções de sua obra completa.
Em meio à ressaca moral do século, no estilo limpo e quase clássico do autor, afeito à forma dos paradoxos, os contos das duas coletâneas -incluindo textos célebres, como "Pierre Menard, o Autor do Quixote", "Funes, o Memorioso", "O Imortal" e "Biografia de Tadeo Isidoro Cruz", que afirmaram a singularidade da voz borgiana nas letras mundiais- multiplicam passagens labirínticas, abrindo seu quarto-biblioteca, aparentemente encerrado no universo do mito, ao tempo e à história.
Como para o protagonista de "As Ruínas Circulares", o "projeto mágico" de Borges (sonhar minuciosa e metodicamente o homem) implica um constante oscilar entre os pólos da invenção e da observação, dimensão central do problema do criador moderno. A tópica do sonho, a presença fractal da obra dentro da obra, o tema do teatro do mundo, a realidade entendida como jogo e representação, são recursos que lhe servem para suspender provisoriamente as fronteiras entre ficção e narrativa histórica, maneiras diversas de trabalhar a ilusão humana. E, para ir ao encontro dessa experiência, Borges mostra que, ao contrário do que defende Wolfe, o caminho mais curto nem sempre é a porta da rua.


O ALEPH
Autor: Jorge Luis Borges
Tradução: Davi Arrigucci Jr.
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33 (158 págs.)
Avaliação: ótimo



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