São Paulo, domingo, 10 de maio de 2009

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Mônica Bergamo

bergamo@folhasp.com.br

dez mil anos atrás

Duas décadas depois da morte de Raul Seixas, documentário reúne seus amigos para contar as histórias do criador da sociedade alternativa

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Sylvio Passos no seu "museu' dedicado a Raul Seixas, ao lado da capa usada no "Programa Silvio Santos"

"Defeitos: "rou" unha + / sou medroso ++ / sofro de claustrofobia ++ / (masturbo) +++"

 

"Meninas que namorei: 54 -Maria de Fátima ... nem uma colada; 55 - Glorinha... Topava tudo, uma vassoura lascada."

 

Os relatos do diário com cara de agenda de menina-moça, junto com pilhas de discos, livros e roupas, fazem parte do acervo de memórias de Raul Seixas (1945-1989) preservado por Sylvio Passos, 46, no quartinho dos fundos de sua casa, na Vila Brasilina, zona sul de SP.

 

Passos foi, por muitos anos, o "AA" de Raul: amigo e assessor para assuntos aleatórios. Hoje, é presidente do fã-clube Raul Rock Club e, nos últimos tempos, personagem e consultor do documentário "Raul Seixas - O Início, o Fim e o Meio", que marca os 20 anos da morte do roqueiro. Há dez dias, ele recebeu os diretores do filme, Walter Carvalho e Evaldo Mocarzel, em sua casa.

 

Sentado no quartinho, entre paredes com pôsteres do maluco beleza, Sylvio contou aos diretores como conheceu Raul. "Liguei para dizer que queria criar o fã-clube e ele pensou que era o Silvio Santos. "Oi, Silvio! Eu faço seu programa, sim"." Raul tocou no "Silvio Santos" uma vez, em 1973, e nunca mais foi convidado, relata Sylvio ao lado da capa que o cantor usou no programa.

 

Walter Carvalho reclama porque Sylvio organizou o seu museu desde a última visita da equipe, deixando o cenário menos interessante. "Ele emprestava tudo para qualquer um. Eu disse que ele não podia fazer isso e, quando a Lulu [diretora de arte] veio buscar material de pesquisa, ele não quis emprestar mais."

 

Das caixas, Silvícola, apelido de Sylvio dado por Raul, vai tirando fragmentos da história com o amigo, como os shows de Serra Pelada -segundo relato feito pelo cantor em uma música, ele chegou a dar autógrafos no garimpo enquanto defecava num buraco. A aventura quase acaba mal. "Em São Paulo, Raul cantava alcoolizado e o público curtia. Lá, queriam que ele cantasse igualzinho ao que estava no disco. Não ia dar certo", diz Sylvio. "Queríamos receber em ouro e tivemos de fugir de jatinho, sem nada."

 

No dia anterior, os diretores filmaram uma cena com 50 motos em referência ao espírito "Easy Rider" de Raul e às motocicletas que, reza a lenda, teriam seguido o caminhão que levou o caixão do cantor ao aeroporto de Congonhas quando ele morreu -Raul foi enterrado em Salvador. "Isso nunca aconteceu", diz Sylvio. Se o assunto é Raul, os diretores penam para chegar à "verdade": as versões se multiplicam. "A Dalva [empregada], que achou ele morto, diz que ele não bebia, que nunca o viu com uma vodca", conta Evaldo, que morou no prédio em que Raul morreu, na rua Frei Caneca.

 

No dia seguinte, a equipe vai atrás de Leno, da dupla com Lilian e amigo de Raul, hospedado no hotel Excelsior, no centro de SP. O cantor se atrasa. Passou a noite ensaiando para o show dedicado a Raul na Virada Cultural. Quando surge, escova de cabelo no bolso do paletó, a equipe só pensa em aproveitar o resto da luz que se vai. "Vai ser rápido. Quero saber como se conheceram e sobre o Paulo Coelho", diz Walter.

 

Leno conta que foi no Rio, em 1968. "Éramos nordestinos, míopes e magricelas, interessados em astronomia e filosofia." Logo Walter introduz o tema Coelho. Leno conta sua versão sobre o mago e o maluco. Leu na revista "A Pomba" um artigo sobre ufologia de um tal Paulo, que indicou para Raul. No outro dia, os três já jantavam na casa do roqueiro. "Começou um papo sobre magia negra e achei que o Raul não ia se dar bem com o cara. A gente pensava mais no lado científico."

 

Em pouco tempo, a nova dupla, que criou a letra e a filosofia da "Sociedade Alternativa", dava entrevistas sobre a aparição de discos voadores. "Depois, o Paulo falou que ia se afastar do Raul por causa da magia negra. Mas foi ele que ensinou isso ao Raul", diz Leno.

 

Aproveitando a passagem por São Paulo de Edy Star, 71, amigo que gravou um disco com Raul e hoje vive em Madri, a equipe filma seu depoimento na Galeria do Rock. "Ai, você quer pegar no meu peitinho!", diz Edy, enquanto o técnico posiciona o microfone. Ele diz, brincando, que "namorou" Raul Seixas na Bahia nos idos anos 60. "Nós éramos atração de um programa de TV. Eu entrava no palco bem bicha. Raul não gostava, fazia cara feia." Edy começou a ligar para o colega. "Eu dizia que era fã, fazia voz de mulherzinha." Raul caía no trote. "Claro, ele queria comer mulher."

 

No Dia do Trabalho, a equipe visitou a clínica para dependentes químicos Vila Serena, na represa de Guarapiranga, onde, em 1989, Raul se internou pela última vez na companhia de Lena, sua última mulher. Chegou tão debilitado que não tinha condições de passar nem mesmo uma hora assistindo a palestras sobre a cura do vício. Diabetes, alcoolismo e pancreatite faziam parte de sua ficha médica.

 

Benedito Negrão, 75, ex-dependente e consultor quando Raul chegou por lá, diz que o músico usava maconha, cocaína, anfetamina, mas que seu problema era mesmo o álcool. "Quem comandava o Raul era a bebida. Sem, ele era como um balão apagado." Ali, não era maluco beleza, não falava com ninguém. "Mas gritava internamente."

 

Pouco antes de Raul morrer, Negrão foi visitá-lo em casa. Encontrou o amigo mal. "Ele só tomava suco e vomitava." Negrão sugeriu que Raul se internasse de novo. "Amanhã, vejo isso", disse o cantor. "Foi uma desculpa simpática para dizer "não venha mais. Tenho o direito de morrer'", diz Negrão. Raul morreu pouco depois, em casa. A diretora de arte do documentário, Luciana Continentino, senta no chão e chora.

 

Na saída, Negrão convida para a festa que vai celebrar os seus 26 anos sem vícios. E a coordenadora da clínica, Silze Morgado, conta que até hoje os pacientes ouvem passos de noite. Eles dizem que é Raul que ainda anda por ali.


Reportagem ADRIANA KÜCHLER


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