São Paulo, Segunda-feira, 10 de Maio de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O encenador leva seu jovem elenco à Turquia para estrear a adaptação de "As Troianas", num libelo contra o horror dos conflitos do século 20
Antunes Filho vai à guerra com "Fragmentos Troianos"

NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

Sabrina Greve, 21, fez um curso de interpretação aqui, outro ali, e entrou para o Centro de Pesquisa Teatral, CPT. Cerca de um ano atrás, criou uma cena "realista" ao lado de Luiz Päetow, 22, num quadro curto -como aqueles que ainda estão em cartaz em "Prêt-à-Porter", em São Paulo. Antunes Filho estava na "platéia" da pequena sala de ensaios do CPT.
Viu, fez observações críticas, sobretudo a Päetow, que acabou virando seu assistente de direção. Mas Antunes não conseguiu, embora tenha tentado, ele que se diz contra elogiar jovens excessivamente, esconder o quanto gostou de Sabrina Greve.
A atriz saiu daquela cena para ser uma das protagonistas, Andrômaca, de "Fragmentos Troianos". A peça é um libelo contra a guerra que Antunes Filho e companhia mostram em estréia mundial no próximo dia 2, em Istambul, na Turquia -de lá, seguem para o Japão, onde se apresentam no dia 11, e voltam ao Brasil, onde ainda não têm data de estréia.
O grupo Macunaíma, do encenador e seus jovens intérpretes, em grande parte estreantes no palco, estará em Istambul, a poucas centenas de quilômetros do cenário da guerra da Iugoslávia, com uma peça que retrata a miséria, o horror de todas as guerras.
"Fragmentos" mostra a humilhação extrema dos derrotados, no caso, das mulheres troianas viúvas e seus filhos órfãos, nas mãos dos guerreiros gregos vitoriosos, como descreve a tragédia do pacifista Eurípides (c. 485-407 a.C.).
Mas poderiam muito bem ser (e a encenação cuida de evidenciar a semelhança) os kosovares muçulmanos expulsos pelos sérvios ortodoxos, como poderiam ser (o que a encenação também evidencia) os sérvios atingidos pelos norte-americanos da Otan.
A montagem de "As Troianas", o título original da tragédia, que é chamada de "Fragmentos" pelos cortes feitos e alguns acréscimos (de Jean-Paul Sartre, do próprio Eurípides), começou muito antes da guerra da Iugoslávia. E começou antes, aliás, do próprio convite do 11º Festival Internacional de Teatro de Istambul.
No entender de Antunes, o espetáculo começou com o choque das imagens de tragédias brasileiras, como a chacina dos meninos da Candelária, em 93, e o massacre dos sem-terra em Eldorado dos Carajás, em 96. A partir daí, a peça se desenvolveu como síntese dos horrores do século 20.
Estão todos lá, de um jeito ou de outro, em "Fragmentos", embora a guerra da Iugoslávia chame mais atenção. Em especial no cenário, no telão de fundo criado por Juvenal Irene dos Santos, com a imagem de Palas Atena, a deusa aliada dos gregos para a Guerra de Tróia -e em tudo semelhante à estátua da Liberdade, até por ser sua inspiração. Mas uma estátua que estende um manto de morte.
Nos figurinos e demais elementos da cenografia, inspirados que foram em cenas do Holocausto e da Segunda Guerra, a visão está mais ligada, por outro lado, às imagens da "limpeza étnica" dos kosovares pelos sérvios.

Geração
Para Istambul vai todo um elenco muito jovem, de certa maneira encabeçado por Gabriela Flores, 24, que faz Hécuba.
A atriz também chamou a atenção do diretor numa cena "realista", das muitas que o elenco do CPT apresenta semanalmente, na pequena sala de ensaios. A cena foi levada ao palco na peça de quadros "Prêt-à-Porter", que é apresentada todo sábado no hall de convivência do Sesc Consolação.
Gabriela, Sabrina Greve e Luiz Päetow, ao lado de cenógrafas como Jacqueline Ozelo, 30, formam a linha de frente de uma nova geração de artistas de teatro criada sob as asas de Antunes Filho, no Centro de Pesquisa Teatral. Eles descrevem os meses de ensaio com humor e algum temor.
"A gente ficou improvisando meses", diz Gabriela.
"Criando cenas", diz Sabrina.
"Ele passava pela sala, escutava alguma coisa e depois falava: "Não é nada disso'", diz Gabriela.
"Ele via as cenas no final e destruía tudo", diz Sabrina.
Foram seis meses criando cenas -sem palavras- a partir de fotos de campo de concentração e dos sem-terra, entre outras, num trabalho semelhante ao que levou a "Prêt-à-Porter". Quando chegou o texto, que foi adaptado pelo diretor, as melhores cenas se mesclaram aos poucos à trama.
Antunes Filho se recusa a falar dos artistas que já deixaram o CPT e o grupo Macunaíma para carreiras de repercussão. Questionado sobre a saída do ator Luis Melo para a TV, por exemplo, diz apenas que ele, Antunes, não mudou a sua visão ética do assunto.
Sempre insistindo que desde "Prêt-à-Porter" seu trabalho mudou, o diretor só quer falar de seus jovens artistas. Do que fez para torná-los desenvoltos não apenas nas técnicas de interpretação, mas também na ética e até na retórica. Gabriela, Sabrina, Luiz, Jacqueline e outros, de fato, dão entrevistas e argumentam com o domínio de artistas experientes.
Discorrem sobre a "nova retórica", movimento surgido nos anos 50, com largo conhecimento. Planejam formar, eles próprios, a partir do CPT, toda uma nova dramaturgia brasileira. Para não falar de seu conhecimento dos Bálcãs, eles que estão para embarcar para bem perto do palco da guerra.

Resumo
Em tempo: "Fragmentos", que elimina alguns personagens de "As Troianas", como Helena, concentra-se no destino trágico de Hécuba, viúva do rei Príamo, e Andrômaca, viúva do herói Heitor, terminada a guerra. As mulheres estão nas mãos dos gregos, que decidem o que fazer delas.
Uma das filhas de Hécuba, Polixena, é assassinada em ritual. Andrômaca, que traz o filho de Heitor, tem a criança levada para fora de cena e jogada viva do alto das muralhas de Tróia. O corpo é entregue, Tróia é incendiada, e Hécuba, Andrômaca e as troianas são tomadas como escravas.
"Eu quero que a última cena seja um feliz Ano Novo para o próximo século", diz Antunes. "Todos os deserdados, as viúvas, os órfãos, esse resumo do nosso século."


Texto Anterior: Joyce Pascowitch
Próximo Texto: Relâmpagos - João Gilberto Noll: Atalho
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.