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Uma missão de afeto nada ordinária
especial para a Folha
"Não é um dia como outro qualquer." Assim começa "Últimos Pedidos" e essa frase vai voltando à
consciência a cada página virada
do romance, como que a resumir a
impressão que Graham Swift causa
ao leitor.
Não, "Últimos Pedidos" não é
um romance qualquer. De início,
temos quatro amigos que se encontram em um pub no sul de Londres. Há um quinto, reduzido a
cinzas numa urna funerária, cujo
pedido de ter seus restos mortais
jogados ao mar, os outros -Ray,
Vic, Lenny e Vince- vão honrar.
O diálogo flui, coloquial; as descrições são esparsas e econômicas.
Começa a viagem até Margate,
no sudeste da Inglaterra, e os apelidos vão tomando forma, virando
personagens. Jack Dodds, o açougueiro morto. Ray, funcionário semi-aposentado de uma companhia de seguros e apostador de cavalos. Lenny, feirante. Vic, agente
funerário. Vince, filho adotivo do
morto e vendedor de carros. Homens de meia-idade, ou quase chegando lá, metidos num carro. Conversam. Lembram. E disputam,
veladamente, a tarefa de carregar a
caixa de papelão onde estão metidas as cinzas do amigo.
A jornada, embora não seja como "outra qualquer", nada tem de
extraordinária. Nem nenhum dos
dramas dos personagens. O que
faz de "Últimos Pedidos" uma daquelas surpresas gratas é que, de
repente, sem muito aviso prévio, o
leitor percebe estar diante de uma
obra que nada tem de ordinária.
Em algum momento, as frases entrecortadas que constituem os diálogos ganham densidade, como
quando entendemos o que as pessoas dizem porque as conhecemos
e conhecemos sua história.
A prosa sem artifícios de Swift
engana, como se não houvesse ali
um esforço de construção. Tanto
há que é possível entrevê-lo lá e cá,
como na força simbólica das profissões de cada um dos personagens -dois abastecem os vivos,
um enterra os mortos, um supre a
necessidade de mobilidade e outro
lida com a sorte e o azar-, mas, no
mais das vezes, está tão imbricado
na textura da escrita que se torna
agradavelmente invisível. À medida que a narrativa prossegue, estruturada em monólogos de cada
um dos cinco homens, mais os das
esposas Amy, de Jack, e Mandy, de
Vince, vamos penetrando na intimidade de cada uma dessas pessoas, às vezes lentamente, juntando peças e intuindo acontecimentos, às vezes sendo surpreendidos
pela carga emotiva das revelações.
A contemplação generosa de
Swift da vida humana e de algumas
de suas questões fundamentais
-trabalho, amor, amizades, guerra, morte- confere grandeza a esses homens e mulheres enredados
em suas vidas cotidianas. Assim
como humor e drama, que imprimem tons diversos a essa missão
de afeto e acertos de contas. Acerto
de contas, sim, com a história, a Segunda Guerra, que entrecortou a
vida de todos os personagens e definiu seus rumos, e com a perecibilidade da vida humana.
O percurso do sul de Londres até
Margate remete a uma das obras
fundamentais da língua inglesa,
"Os Contos da Cantuária", de
Geoffrey Chaucer, conforme nos
informa o tradutor José Antonio
Arantes em seu posfácio incluído
na edição brasileira. Boa a escolha
de trazer notas explicativas sobre a
geografia e a história de Londres,
assim como as referências literárias. Embora o desconhecimento
parcial ou total dessas informações não atrapalhe a primeira leitura, uma segunda na posse das
mesmas amplia e confirma a impressão das primeiras páginas.
"Últimos Pedidos" não é mesmo
um romance como outro qualquer. Ou, parafraseando uma frase
de Amy sobre Ray, é um romancezinho e tanto.
(BA)
Avaliação:
Livro: Últimos Pedidos
Autor: Graham Swift
Lançamento: Cia. das Letras
Quanto: R$ 26 (302 págs)
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