São Paulo, Segunda-feira, 10 de Maio de 1999
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Uma missão de afeto nada ordinária

especial para a Folha

"Não é um dia como outro qualquer." Assim começa "Últimos Pedidos" e essa frase vai voltando à consciência a cada página virada do romance, como que a resumir a impressão que Graham Swift causa ao leitor.
Não, "Últimos Pedidos" não é um romance qualquer. De início, temos quatro amigos que se encontram em um pub no sul de Londres. Há um quinto, reduzido a cinzas numa urna funerária, cujo pedido de ter seus restos mortais jogados ao mar, os outros -Ray, Vic, Lenny e Vince- vão honrar. O diálogo flui, coloquial; as descrições são esparsas e econômicas.
Começa a viagem até Margate, no sudeste da Inglaterra, e os apelidos vão tomando forma, virando personagens. Jack Dodds, o açougueiro morto. Ray, funcionário semi-aposentado de uma companhia de seguros e apostador de cavalos. Lenny, feirante. Vic, agente funerário. Vince, filho adotivo do morto e vendedor de carros. Homens de meia-idade, ou quase chegando lá, metidos num carro. Conversam. Lembram. E disputam, veladamente, a tarefa de carregar a caixa de papelão onde estão metidas as cinzas do amigo.
A jornada, embora não seja como "outra qualquer", nada tem de extraordinária. Nem nenhum dos dramas dos personagens. O que faz de "Últimos Pedidos" uma daquelas surpresas gratas é que, de repente, sem muito aviso prévio, o leitor percebe estar diante de uma obra que nada tem de ordinária. Em algum momento, as frases entrecortadas que constituem os diálogos ganham densidade, como quando entendemos o que as pessoas dizem porque as conhecemos e conhecemos sua história.
A prosa sem artifícios de Swift engana, como se não houvesse ali um esforço de construção. Tanto há que é possível entrevê-lo lá e cá, como na força simbólica das profissões de cada um dos personagens -dois abastecem os vivos, um enterra os mortos, um supre a necessidade de mobilidade e outro lida com a sorte e o azar-, mas, no mais das vezes, está tão imbricado na textura da escrita que se torna agradavelmente invisível. À medida que a narrativa prossegue, estruturada em monólogos de cada um dos cinco homens, mais os das esposas Amy, de Jack, e Mandy, de Vince, vamos penetrando na intimidade de cada uma dessas pessoas, às vezes lentamente, juntando peças e intuindo acontecimentos, às vezes sendo surpreendidos pela carga emotiva das revelações.
A contemplação generosa de Swift da vida humana e de algumas de suas questões fundamentais -trabalho, amor, amizades, guerra, morte- confere grandeza a esses homens e mulheres enredados em suas vidas cotidianas. Assim como humor e drama, que imprimem tons diversos a essa missão de afeto e acertos de contas. Acerto de contas, sim, com a história, a Segunda Guerra, que entrecortou a vida de todos os personagens e definiu seus rumos, e com a perecibilidade da vida humana.
O percurso do sul de Londres até Margate remete a uma das obras fundamentais da língua inglesa, "Os Contos da Cantuária", de Geoffrey Chaucer, conforme nos informa o tradutor José Antonio Arantes em seu posfácio incluído na edição brasileira. Boa a escolha de trazer notas explicativas sobre a geografia e a história de Londres, assim como as referências literárias. Embora o desconhecimento parcial ou total dessas informações não atrapalhe a primeira leitura, uma segunda na posse das mesmas amplia e confirma a impressão das primeiras páginas. "Últimos Pedidos" não é mesmo um romance como outro qualquer. Ou, parafraseando uma frase de Amy sobre Ray, é um romancezinho e tanto. (BA)



Avaliação:


Livro: Últimos Pedidos
Autor: Graham Swift
Lançamento: Cia. das Letras
Quanto: R$ 26 (302 págs)




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