São Paulo, sexta-feira, 10 de junho de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Os amantes de Fausta

Não vem ao caso contar como e por que me apaixonei por Fausta. Uma mulher com esse nome não merecia o amor de ninguém, muito menos o de um sujeito como eu, que não sou dado a paixões. A verdade é que, um dia, constatei que estava apaixonado por ela e, em decorrência disso, competia-me conquistá-la. Não chegou a ser uma resolução heróica de minha parte: eu não tinha nada a fazer naquela ocasião, e dedicar-me à conquista de uma mulher cujo nome era Fausta, se não resolvia nenhum dos meus problemas, pelo menos deveria me distrair.
Acontece que Fausta era mulher de um corsário. Um senhor capitão-corsário, desses que têm navios, fragatas, brigues -tudo que bóia sobre o mar. Todos tinham aquela bandeira negra com a caveirinha instalada no meio de duas e cruzadas tíbias. Ao contrário da tradição, tinha as duas pernas íntegras e íntegras as duas mãos. Íntegros também os dois olhos, sem aquela venda que taparia o olho arrancado num dos combates que travara nos mares do mundo. Tampouco tinha um papagaio em cima do ombro. Era realmente um pirata íntegro.
Muito viajava -o que, em princípio, me pareceu salutar premonição: com o marido passando longas e constantes temporadas em alto-mar, Fausta teria muitas horas vagas para ser por mim conquistada.
Foi justamente esse detalhe que muito me prejudicou: passando meses e, às vezes, anos longe do marido, Fausta possuía uma legião de amantes e achava, com justificada razão, que as suas necessidades estavam suficientemente supridas. Não havia espaço para mais um amante e, mesmo que houvesse espaço, não haveria tempo. Os amantes de Fausta -"Fausta's Lovers"- desfilavam diariamente pela sua casa e o desfile só se interrompia quando o capitão, cansado dos mares e das intempéries do mundo, resolvia voltar e ficar com a mulher por uns tempos.
A primeira coisa que percebi foi isto: em terra, as minhas possibilidades eram mínimas. Para atingir o meu objetivo, era necessário obrigar Fausta a ir para as águas com o capitão. Uma tarefa difícil, por sinal. Não é fácil convencer uma mulher com a qual nunca se falou a partir em busca dos mares do mundo e a enfrentar as borrascas e as ciladas do alto e profundo abismo dos oceanos a custa de um prazer de que ela não precisava, pois o tinha de sobra em terra. Além do mais, tratava-se da mulher de um legítimo lobo-do-mar, que deveria ter as suas razões para não querer a sua mulher metida nos mesmos perigos.
Passei algum tempo meditando sobre como proceder para convencer Fausta a embarcar. Quando constatei que jamais o conseguiria com os meus próprios recursos, tive um estalo: o capitão! Não convenceria a mulher, convenceria o marido, que sempre é mais fácil de ser convencido. Aprendi em livros de boa literatura que o melhor meio de se convencer alguém de alguma coisa é fazer uso de uma carta anônima. E nada mais fácil para mim do que escrever cartas, principalmente as anônimas. Tinha algum treino nesse ofício, pois consegui livrar-me de desafetos ao longo de minha vida usando e abusando desse salutar e necessário recurso.
Certo marinheiro, que uma noite me esbofeteou na taverna onde eu fazia ponto, foi acusado perante as autoridades de blasfêmia contra santo Anselmo -o padroeiro de nosso porto. Até hoje, o marinheiro curte a sua pena nas úmidas enxovias do Forte dos Mortos sem desconfiar de quem o denunciou.
De mão destra, embora seja canhoto, escrevi caprichada e capciosa missiva ao capitão, denunciando o péssimo comportamento de sua mulher, narrando com abundância de detalhes (alguns verdadeiros, que eram sabidos por todos, outros inventados por mim) as múltiplas fornicações daquela que deveria ser a guarda de sua honra. Carreguei nas tintas, descrevendo os perigos do alto-mar que o capitão enfrentava, as emboscadas dos inimigos, os abrolhos da marinheira vida, enquanto, em terra, a sua mulher gozava de variegados homens, passando entre as suculentas pernas metade do porto e metade das vizinhanças, o que constituía um todo desabonador para a honra do capitão.
O diabo é que carreguei nas tintas e, na ânsia de acrescentar pormenores escabrosos, incluí um amante imaginário: eu próprio. Descrevi meu tipo com riqueza de detalhes. Sendo muito branco e tendo uma cicatriz no queixo, acrescentei esses dados para caracterizar o amante que mais assiduamente corneava o capitão.
O resultado é que o próprio, em recebendo a carta, só conseguiu identificar um dos amantes de sua mulher. Foi assim que, na calada da noite, enquanto soprava o terrível boroeste -o vento gelado que varre os portos do mundo-, fui cercado por diversos e mal-encarados indivíduos que me esperavam à saída da taverna onde eu costumava, todos os dias, beber rum e comer toucinho com feijões brancos.
Num paradoxo que nem o futuro Freud séculos mais tarde explicaria, a surra aumentou o desejo de possuir Fausta. Desejo que se consumou quando, após complicados truques de minha parte, a mulher finalmente embarcada pelo capitão e eu a bordo, o navio passava ao largo do cabo das Tormentas.


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