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CARLOS HEITOR CONY
Os amantes de Fausta
Não vem ao caso contar como e por que me apaixonei
por Fausta. Uma mulher com esse
nome não merecia o amor de ninguém, muito menos o de um sujeito como eu, que não sou dado a
paixões. A verdade é que, um dia,
constatei que estava apaixonado
por ela e, em decorrência disso,
competia-me conquistá-la. Não
chegou a ser uma resolução heróica de minha parte: eu não tinha
nada a fazer naquela ocasião, e
dedicar-me à conquista de uma
mulher cujo nome era Fausta, se
não resolvia nenhum dos meus
problemas, pelo menos deveria
me distrair.
Acontece que Fausta era mulher de um corsário. Um senhor
capitão-corsário, desses que têm
navios, fragatas, brigues -tudo
que bóia sobre o mar. Todos tinham aquela bandeira negra
com a caveirinha instalada no
meio de duas e cruzadas tíbias.
Ao contrário da tradição, tinha as
duas pernas íntegras e íntegras as
duas mãos. Íntegros também os
dois olhos, sem aquela venda que
taparia o olho arrancado num
dos combates que travara nos
mares do mundo. Tampouco tinha um papagaio em cima do
ombro. Era realmente um pirata
íntegro.
Muito viajava -o que, em
princípio, me pareceu salutar premonição: com o marido passando
longas e constantes temporadas
em alto-mar, Fausta teria muitas
horas vagas para ser por mim
conquistada.
Foi justamente esse detalhe que
muito me prejudicou: passando
meses e, às vezes, anos longe do
marido, Fausta possuía uma legião de amantes e achava, com
justificada razão, que as suas necessidades estavam suficientemente supridas. Não havia espaço para mais um amante e, mesmo que houvesse espaço, não haveria tempo. Os amantes de Fausta -"Fausta's Lovers"- desfilavam diariamente pela sua casa e
o desfile só se interrompia quando o capitão, cansado dos mares e
das intempéries do mundo, resolvia voltar e ficar com a mulher
por uns tempos.
A primeira coisa que percebi foi
isto: em terra, as minhas possibilidades eram mínimas. Para atingir o meu objetivo, era necessário
obrigar Fausta a ir para as águas
com o capitão. Uma tarefa difícil,
por sinal. Não é fácil convencer
uma mulher com a qual nunca se
falou a partir em busca dos mares
do mundo e a enfrentar as borrascas e as ciladas do alto e profundo
abismo dos oceanos a custa de
um prazer de que ela não precisava, pois o tinha de sobra em terra.
Além do mais, tratava-se da mulher de um legítimo lobo-do-mar,
que deveria ter as suas razões para não querer a sua mulher metida nos mesmos perigos.
Passei algum tempo meditando
sobre como proceder para convencer Fausta a embarcar. Quando constatei que jamais o conseguiria com os meus próprios recursos, tive um estalo: o capitão!
Não convenceria a mulher, convenceria o marido, que sempre é
mais fácil de ser convencido.
Aprendi em livros de boa literatura que o melhor meio de se convencer alguém de alguma coisa é
fazer uso de uma carta anônima.
E nada mais fácil para mim do
que escrever cartas, principalmente as anônimas. Tinha algum
treino nesse ofício, pois consegui
livrar-me de desafetos ao longo de
minha vida usando e abusando
desse salutar e necessário recurso.
Certo marinheiro, que uma noite me esbofeteou na taverna onde
eu fazia ponto, foi acusado perante as autoridades de blasfêmia
contra santo Anselmo -o padroeiro de nosso porto. Até hoje, o
marinheiro curte a sua pena nas
úmidas enxovias do Forte dos
Mortos sem desconfiar de quem o
denunciou.
De mão destra, embora seja canhoto, escrevi caprichada e capciosa missiva ao capitão, denunciando o péssimo comportamento
de sua mulher, narrando com
abundância de detalhes (alguns
verdadeiros, que eram sabidos
por todos, outros inventados por
mim) as múltiplas fornicações
daquela que deveria ser a guarda
de sua honra. Carreguei nas tintas, descrevendo os perigos do alto-mar que o capitão enfrentava,
as emboscadas dos inimigos, os
abrolhos da marinheira vida, enquanto, em terra, a sua mulher
gozava de variegados homens,
passando entre as suculentas pernas metade do porto e metade das
vizinhanças, o que constituía um
todo desabonador para a honra
do capitão.
O diabo é que carreguei nas tintas e, na ânsia de acrescentar pormenores escabrosos, incluí um
amante imaginário: eu próprio.
Descrevi meu tipo com riqueza de
detalhes. Sendo muito branco e
tendo uma cicatriz no queixo,
acrescentei esses dados para caracterizar o amante que mais assiduamente corneava o capitão.
O resultado é que o próprio, em
recebendo a carta, só conseguiu
identificar um dos amantes de
sua mulher. Foi assim que, na calada da noite, enquanto soprava
o terrível boroeste -o vento gelado que varre os portos do mundo-, fui cercado por diversos e
mal-encarados indivíduos que
me esperavam à saída da taverna
onde eu costumava, todos os dias,
beber rum e comer toucinho com
feijões brancos.
Num paradoxo que nem o futuro Freud séculos mais tarde explicaria, a surra aumentou o desejo
de possuir Fausta. Desejo que se
consumou quando, após complicados truques de minha parte, a
mulher finalmente embarcada
pelo capitão e eu a bordo, o navio
passava ao largo do cabo das Tormentas.
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