São Paulo, domingo, 10 de junho de 2007

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Carvalho prega "descontrole" na TV

Em "A Pedra do Reino", minissérie que estréia terça, diretor de "Lavoura Arcaica" reconstrói universo mítico do sertão

Releitura da obra de Ariano Suassuna inaugura o projeto "Quadrante", que levará à telinha Machado de Assis e Milton Hatoum

Divulgação
O ator Irandhir Santos na pele do protagonista Quaderna na velhice, vestido de palhaço e narrando suas memórias no centro da praça de Taperoá, na Paraíba

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando era criança, o pai de Quaderna deu-lhe chá de cardina para tomar. A beberagem, dizia-se no sertão paraibano nos distantes anos 30, ajudava a "abrir a cabeça" dos garotos, mas diminuía sua "homência", ou seja, sua virilidade.
Quaderna então cresceu, alucinado pelo sol inclemente e a obsessão de escrever uma "obra magnífica" que o faria ser eleito "grande gênio da raça".
A trajetória delirante, verborrágica e quixotesca desse herói sertanejo conduz a minissérie "A Pedra do Reino", arriscada investida do diretor Luiz Fernando Carvalho, 47, que vai ao ar a partir da próxima terça-feira, na Rede Globo, depois de "Casseta & Planeta" (por volta das 22h30).
Releitura do romance de Ariano Suassuna, a série usa recursos já apresentados em "Hoje É Dia de Maria" (2005), que confrontava o naturalismo narrativo com a criação de um universo lúdico e simbólico.
Agora, Carvalho busca dissociar-se ainda mais da narrativa formal e linear. Os cinco capítulos de "A Pedra do Reino" correspondem aos cinco livros em que se divide a obra de Suassuna, mas cada um evolui de forma particular.
O que alinhava a história é menos um referencial cronológico do que a intenção de provocar experiências "sensoriais" nos espectadores. Nas palavras de Carvalho, roubadas das páginas do próprio escritor paraibano, o seriado é um "circorama da phantasmagoria".
O diretor de "Lavoura Arcaica" (2001) diz que está propondo uma "uma narrativa do descontrole" dentro de um universo televisivo tomado por apenas "uma forma de narrar". Apesar disso, não acredita na hipótese de a obra parecer hermética para o público comum. "A Pedra" faz parte do projeto "Quadrante", que prevê a adaptação de outras três obras literárias pelo diretor. A próxima será "Dom Casmurro", de Machado de Assis. Depois virão "Dois Irmãos", de Milton Hatoum, e "Dançar Tango em Porto Alegre", de Sergio Faraco. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista que Carvalho concedeu à Folha.

FOLHA - Você diz que nunca pensou "A Pedra do Reino" como cinema. Mas a série tampouco parece se identificar muito com TV. Como você definiria essa releitura da obra?
LUIZ FERNANDO CARVALHO
- Me pergunto se é necessário um nome. O que vejo é um organismo dividido em cinco partes. O pouco que realizei para TV foi no caminho de tentar humanizar a narrativa, na maioria das vezes forjada de forma hegemônica e industrial. Se na televisão tenho a sensação de estar sendo vigiado por todos os lados, no cinema é o contrário. Como se estivesse sozinho em meu quarto, falando com meus segredos: livre, dentro do cativeiro do rigor.
Meu modo de rodar "A Pedra do Reino" não diminui a TV nem engrandece o cinema, mas também não se deixa escravizar por essa ou aquela linguagem artificial. Quero me libertar do peso industrial que transforma tudo em uma leitura anódina dos seres e da vida. Também não vejo "A Pedra do Reino" como cinema. Gostaria de insistir que é um projeto de TV e para a TV, mas, talvez, simplesmente, uma outra TV.

FOLHA - Os dois primeiros capítulos expõem o deslumbramento do personagem e o mundo mítico que o cerca. A "trama" propriamente dita só começa no terceiro capítulo. Não acha que corre o risco de o seriado tornar-se pouco acessível?
CARVALHO
- Pertenço ao grupo daqueles que acreditam que o público não é burro, mas doutrinado debaixo de um cabresto de linguagem. Luto contra isso. Sabendo da dimensão que a televisão alcança no Brasil, tratá-la apenas como diversão me parece bastante contestável. Precisamos de diversão, mas também precisamos nos orientar e entender o mundo.
Procuro um diálogo entre os que sabem e os que não sabem; um diálogo simples, sóbrio e fraterno, no qual aquilo que para o homem de cultura média é adquirido e seguro torne-se também patrimônio para o homem mais comum, pobre, e que, em relação a tantas questões, está ainda abandonado.

FOLHA - Não crê que pode parecer hermético ao público mais amplo?
CARVALHO
- Fomos adestrados para compreender e gostar de apenas um modo de narrar.
Somos induzidos pelo cinema norte-americano. Por uma linguagem que leva as pessoas a gostar mais daquilo que podem controlar. Existe uma ideologia do controle, e o que proponho é uma narrativa do descontrole, algo que provoque um desequilíbrio sensorial, que quebre o tédio cartesiano que reina.
Não acho que a pessoa mais letrada vá entender melhor do que quem tem uma formação simples, pois é preciso pegar pelo sensorial. É como se estivéssemos num centro de macumba. Proponho uma cosmogonia que não quer ser didática.

FOLHA - O discurso dos extremistas de "esquerda" e de "direita" de Taperoá dialoga com a política atual?
CARVALHO
- A carapuça vai encaixar como uma luva. Quaderna se sente um estrangeiro em relação à moral estagnada daquela Taperoá, que é um microcosmo do Brasil. Suas idéias expõem as máscaras do pseudopoder, do falso intelectualismo, transformando seu discurso em metáfora revolucionária.
Com a fala emblemática, enraizada, Quaderna reúne as reflexões, as emoções e o riso que nos são hoje necessários.
Vejo o Brasil paralisado. Em que as pessoas têm dificuldade em imaginar um país melhor.

FOLHA - De que modo Glauber Rocha o inspirou nessa releitura?
CARVALHO
- A "Pedra do Reino" é um romance selvagem. O espaço da imaginação do mundo sempre foi um espaço selvagem, por pertencer mais ao inconsciente. O selvagem está associado ao indeterminado, ao estado bruto, a um fluxo de imagens que não foi desbastado pela oficialidade da razão.
O universo sertanejo do romance, épico e barroco, naturalmente nos aproxima da obra selvagem de Glauber. Em algumas seqüências, mesmo sem pensar muito nisso, sem fazer uma mínima força sequer, estava o cara ali, presente.


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