São Paulo, quinta-feira, 10 de junho de 2010

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NINA HORTA

Falsa magra


Se estivesse bem ao gosto dela, fazia cara de bem-aventurança. Se não, cuspia. Sem frescuras


ERA ALTA e magra, nariz arrebitado. Falsa magra, como dizia meu pai. Aos poucos, nada velhinha, que essa expressão nunca lhe caberia, parou de falar, de andar, de brincar, de brigar. Começou o período de ajudantes e papas. Bem ela, que só se realizava cuidando dos outros.
O médico receitou, como comida, se é que me lembro, sopa de água, carne, cenoura, leite de soja e dextrosol. Que não tive coragem de dar.
A nossa acompanhante preferida era uma menina recém-chegada do Norte que tinha o dom da história. Era uma profissional, não se cansava nunca e contava e contava, sem perder o fio, as vidas de príncipes e vultos, reis e madrastas em muito bom português. Quando eu voltava do trabalho, minha mãe tinha comido tudinho e ainda lambera o prato e patati, patatá.
Até que um dia foi preciso levar a doente para o hospital, anêmica. Coisa que aconteceu mais duas vezes e a patati, patatá não era totalmente culpada. Pedi ao médico um mês para ver se conseguia fazer a doente não chegar outra vez ao ponto de remédios e transfusões. Ele deixou, com uma cara descrente. Eu, que detesto comida que faz bem à saúde, paguei a língua.
Comecei fazendo dois panelões de caldos muito fortes. Um de carne, outro de galinha. Tirava a gordura, congelava nas bandejas de gelo e punha os cubos num saco, no freezer. As comidas, daí em diante, batidas no liquidificador, levavam um quadrado daqueles.
O primeiro cuidado era o de só fazer coisas de que ela gostava. A sobremesa, sempre mais fácil.
Lembro-me de uma que ela comia bem alegre. "Três patos na lagoa." Simplesmente purês de frutas, banana, figo, mamão, espalhados à nouvelle cuisine no prato. Uma folhinha de hortelã. Um fio de mel por cima. Bonito. Geralmente eu batia na hora, num pequeno processador, duas castanhas-do-pará ou duas nozes e polvilhava por cima de qualquer coisa.
Para quem sempre comeu bem, é preciso estar alerta quando ela fecha a boca e diz não com a cabeça. A boca sabe o que quer. Se não souber dizer o que é, vamos ter de adivinhar. Usava muito o prático "steamer" de bambu para verduras e legumes, que ela sempre adorou.
Não bebia água, nunca bebeu, dávamos chás de ervas, tisanas, água de coco.
Comprei um livro do professor Sylvio Panizza, "Plantas que Curam" (editora Ibrasa; esgotado). Ótimo, indispensável para a situação. Milhares de coisas que curam.
É preciso variar. E um coulis de agrião cru junto do purê de batata? Duas texturas, duas temperaturas. Salve o Ferran. E uma bebida colorida? Um cará e uma beterraba batidos com laranja, coados, num cálice bonito, gelados? Gostoso, juro.
E porções pequenas em vasilhas bonitas. Cumbuquinhas, taças, pequenas panelas de ferro. A apresentação, no caso de papas, é importantíssima.
Se estivesse bem ao gosto dela, fazia cara de bem-aventurança. Se não, cuspia. Sem frescuras.
Tenho um amigo médico que sempre prescreve um creme conhecido para hematomas. Arremata a receita dizendo: Adiantar, não adianta, mas diverte o cliente. Se é massageado na pele por outro, tem a questão do toque... Vale a pena para o cliente e para quem trata dele. Para o hematoma, já não garanto. Tratar de um doente terminal é mais ou menos isso.
Só sei que, depois de 20 dias, o médico leu o resultado do exame de sangue. Perfeito. Teve de dar o braço a torcer e fomos felizes para sempre, enquanto deu, como nas histórias da menina do Norte.

ninahorta@uol.com.br


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