São Paulo, quinta-feira, 10 de julho de 2008

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NINA HORTA

Um quinau na velha professora



Vou ter que ir à Catalunha pegar o touro à unha, comer berberechos, múrgula, crista de galo, guisantes


HÁ UNS oito anos, no aeroporto Charles de Gaulle, comentei com meus botões: "Nunca mais faço uma viagem internacional". Não agüento mais a viagem em si, os sacolejos pelas escadas rolantes com as malas, esperando uma informação certa, esperando, sempre esperando, a chatice, enfim.
Bem, e o que aconteceu nesse tempo? Nesse pouquíssimo tempo? Dos mares brotou a Espanha. Ontem fui jantar fora, no Maní.
Ninguém me falara nele especialmente, só que era uma comida leve, bonita e pronto.
Não sou crítica de restaurante e aprendi que, para ter uma boa noção, tenho que ir várias e várias vezes. Olhei o menu e já fiquei de pé atrás. Era um cardápio do tipo falante, palrador, como diria Revel. Doces brotinhos de alguma erva, pupunhas e lichias e foie gras, pistaches, frutas secas, pignoli e pupunhas de novo. Todos os nomes que as pessoas gostam de ouvir e que soam bem, dão água na boca.
Não na minha. Gosto de nomes como feijoada, ossobuco, rabada.
Me deu uma certa preguiça, porque já não agüento mais as frescurinhas grátis que não têm nada a ver com o ingrediente principal. Fui seca, pedi um bacalhau e ponto.
A minha intuição foi um fracasso.
Não vou criticar o restaurante, por ser a primeira vez, mas espero voltar bastante, porque a comida era exatamente o que eu mais queria na vida, leve, gostosa, bem-feita, ingredientes que se misturavam lindamente e frescuras adequadas que não apagavam o gosto de nada, só exaltavam. Uma comida inteligente.
No fim da refeição, era um jantar, a chef Helena Rizzo veio conversar um pouco na mesa, delicada, perguntar o que tínhamos achado, e fomos derivando a conversa para cima dela. E, em vez de responder, perguntamos.
Ela acabara de chegar de uma viagem de comilança pela Espanha e aproveitara até o último alfinete de sabedoria nova. Voltou aos melhores restaurantes, e aí já a tínhamos puxado para se sentar na mesa. E deu um quinau na velha professora, na decana, como gostam de me chamar. (Não sei bem o que é decana, mas desconfio que é quem tem décadas e décadas de janela).
Falava com prazer, tinha uma memória do demo, lembrava-se de menus inteiros com seus detalhes, sabia a cor da gelatina cítrica que envolvia a cenourinha e a abobrinha, o esférico das doces ervilhas verdes, mas, assim, com minúcias, com a descrição do prato, da louça, do jeito de arrumar o foie gras, o tipo de máquina ou gel ou o diabo a quatro que tornara em pó a pedra... Ah, menina danada.
Fiz a minha melhor cara de entendida, como se soubesse executar aquelas esferificações e gelatinas todas, mas Helena, pela primeira vez na minha vida, você me fez burra.
Me senti a mais velha mula abaixo do Equador, tive vergonha do meu camarão à provençal, das pequenas criações, das telhas, das misturas.
Helena da mítica mani brasileira, você me nocauteou. E, ainda por cima, com as coisas simples que eu gosto, como o inhame, a batata-doce, o cará, sem pretensões. Aviso a todos. Estou começando na melhor idade (ha...) um revival dos estudos culinários, meio contra a vontade.
Vou ter que ir à Catalunha pegar o touro à unha, comer berberechos, múrgula, crista de galo, blat de moro, guisantes. Parabéns, moçoila bonita, apesar de tudo, do quinau, da burrice, sinto orgulho desta mocidade prenhe de curiosidade, avançando aconteça o que acontecer, a beleza rompante, a inocência, a paixão, a vontade de fazer. Muito interessante.
Quando o Payard esteve aqui pela primeira vez, fez um jantar empratado e gritava para os garçons "Vâmola!!! Vâmola!!!!", que era como aprendera a dizer "Vamos lá!", animando a brigada. Vâmola para você, Helena, do Maní.

ninahorta@uol.com.br


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