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CRÍTICA POESIA
"Boca do Inferno" se prova atual em reedição
Em versos de rara beleza, contradições apontadas por Gregório de Mattos no século 17 seguem sem solução
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Se a antítese é uma das figuras centrais do barroco, é
porque o período em que o
ele se estabeleceu é antitético
e porque a "agudeza", o "engenho" e o "desengano" que
compõem a massa da linguagem barroca dão margem a
esta figura.
Afinal, a antítese não poderia encontrar terreno melhor do que a Contrarreforma
como sucessora do Renascimento, ou seja, um período
de desejo e culpa simultâneos e intensos.
Mas, mais além do período, não poderia haver lugar
mais fértil para esta figura de
linguagem, em que os opostos se tornam idênticos, do
que o Brasil, e mais ainda, a
Bahia do século 17 e, mais do
que nunca, as palavras de
Gregório de Mattos.
Juiz em Portugal, vigário-geral e tesoureiro-mor na Bahia, para, mais tarde, abandonar tudo e tornar-se "cantador itinerante", o "Boca do
Inferno", como era conhecido pela virulência de suas sátiras, expressou melhor do
que ninguém as contradições do Brasil do século 17.
Contradições que, já numa
breve leitura da reedição dos
"Poemas Escolhidos" de Gregório de Matos, feita por José
Miguel Wisnik em 1975, e
agora revista, revelam-se
perfeitamente atuais.
RETRATO DO BRASIL
Afinal, mostra Wisnik,
"Gregório está embrenhado
nas contradições que aponta
e empenhado em dar-lhes
uma resposta. O filho do senhor de engenho encontra o
engenho em plena crise, e
seu mundo, usurpado por
aquilo que ele vê como arrivismo oportunista dos pretensos e falsos nobres, os negociantes portugueses".
Retratista e formador de
uma imagem do Brasil e do
brasileiro, o "Boca do Inferno", já no século 17, compunha versos como: "Que falta
nesta cidade? Verdade/ Que
mais por sua desonra? Honra/ Falta mais que se lhe ponha? Vergonha", num poema de nome não menos surpreendente e atual: "Juízo
anatômico dos achaques que
padecia o corpo da República, em todos os membros, e
inteira definição do que em
todos os tempos é a Bahia".
Considerando que, no barroco, a República é a reconstituição de um corpo, e que
seus membros são os órgãos
que devem fazer esse corpo
funcionar, é visionária a
compreensão de que o que
falta a esse corpo são a verdade, a honra e a vergonha.
Na antítese de Gregório
condensam-se construções
que, para a poesia brasileira,
atingem beleza sem igual. Infelizmente, para nossa realidade política, muita coisa
permanece idêntica.
POEMAS ESCOLHIDOS
AUTOR Gregório de Mattos
ORGANIZAÇÃO José Miguel Wisnik
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 39,50 (360 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
JOSÉ SIMÃO
O colunista é publicado no
caderno Copa 2010
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