São Paulo, sábado, 10 de julho de 2010

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CRÍTICA POESIA

"Boca do Inferno" se prova atual em reedição

Em versos de rara beleza, contradições apontadas por Gregório de Mattos no século 17 seguem sem solução

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Se a antítese é uma das figuras centrais do barroco, é porque o período em que o ele se estabeleceu é antitético e porque a "agudeza", o "engenho" e o "desengano" que compõem a massa da linguagem barroca dão margem a esta figura.
Afinal, a antítese não poderia encontrar terreno melhor do que a Contrarreforma como sucessora do Renascimento, ou seja, um período de desejo e culpa simultâneos e intensos.
Mas, mais além do período, não poderia haver lugar mais fértil para esta figura de linguagem, em que os opostos se tornam idênticos, do que o Brasil, e mais ainda, a Bahia do século 17 e, mais do que nunca, as palavras de Gregório de Mattos.
Juiz em Portugal, vigário-geral e tesoureiro-mor na Bahia, para, mais tarde, abandonar tudo e tornar-se "cantador itinerante", o "Boca do Inferno", como era conhecido pela virulência de suas sátiras, expressou melhor do que ninguém as contradições do Brasil do século 17.
Contradições que, já numa breve leitura da reedição dos "Poemas Escolhidos" de Gregório de Matos, feita por José Miguel Wisnik em 1975, e agora revista, revelam-se perfeitamente atuais.

RETRATO DO BRASIL
Afinal, mostra Wisnik, "Gregório está embrenhado nas contradições que aponta e empenhado em dar-lhes uma resposta. O filho do senhor de engenho encontra o engenho em plena crise, e seu mundo, usurpado por aquilo que ele vê como arrivismo oportunista dos pretensos e falsos nobres, os negociantes portugueses".
Retratista e formador de uma imagem do Brasil e do brasileiro, o "Boca do Inferno", já no século 17, compunha versos como: "Que falta nesta cidade? Verdade/ Que mais por sua desonra? Honra/ Falta mais que se lhe ponha? Vergonha", num poema de nome não menos surpreendente e atual: "Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da República, em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia".
Considerando que, no barroco, a República é a reconstituição de um corpo, e que seus membros são os órgãos que devem fazer esse corpo funcionar, é visionária a compreensão de que o que falta a esse corpo são a verdade, a honra e a vergonha.
Na antítese de Gregório condensam-se construções que, para a poesia brasileira, atingem beleza sem igual. Infelizmente, para nossa realidade política, muita coisa permanece idêntica.


POEMAS ESCOLHIDOS

AUTOR Gregório de Mattos
ORGANIZAÇÃO José Miguel Wisnik
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 39,50 (360 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


JOSÉ SIMÃO
O colunista é publicado no
caderno Copa 2010


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