São Paulo, sexta, 10 de julho de 1998

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Bacon - Canibal do olhar


O pintor Francis Bacon (1909-1992), que devorou as mais distintas manifestações da história da arte para produzir uma pintura figurativa única e personalizada, chega ao Brasil em outubro, para a 24ª Bienal. A curadora da mostra, Dawn Ades, adianta aqui obras e conceitos que trará ao evento


CELSO FIORAVANTE
enviado especial a Londres


Depois de mais de 25 anos de ausência, o pintor irlandês Francis Bacon (1909-1992) está voltando ao Brasil. É uma das mais aguardadas estrelas da próxima edição da Bienal, que será realizada entre 4 de outubro e 13 de dezembro e tem como fio condutor a antropofagia.
A curadoria é da curadora e professora inglesa de história da arte Dawn Ades, que já curou, em 1985, uma grande retrospectiva do artista, na Tate Gallery, em Londres. Organizou também, em 1989, a maior exposição de arte latino-americana na Inglaterra, na londrina Hayward Gallery, com mais de 400 obras.
A curadora é conhecida dos brasileiros. Ela é autora de dois livros de referência fundamentais lançados aqui: "Arte na América Latina" e "Figuras e Semelhanças", sobre a obra de Siron Franco.
Para a Bienal, Dawn cura ainda, com o francês Didier Ottinger, a sala dedicada ao surrealismo e ao dadaísmo.

Folha - Em que Bacon é antropofágico?
Dawn Ades -
Acho Bacon antropofágico e canibalístico em diferentes níveis. Primeiro, pela maneira como ele usa, absorve e reorganiza imagens de outros artistas. Outra característica é a forma como ele trabalha o corpo humano, a maneira como o canibalismo se torna uma manifestação do desejo pelo outro. Esses dois aspectos serão visíveis na mostra.
Folha - A obsessão de Bacon pela boca teria também uma conotação canibalística?
Dawn -
Poderia se relacionar com o ato da ingestão, mas ele pinta a boca sob diferentes perspectivas. Eu vejo a forma como ele pinta a boca em relação ao grito humano, que é a forma de o corpo expelir suas emoções mais extremas.
Eu o relaciono com o texto de Georges Bataille, "La Bouche", no qual o filósofo trata a boca como o meio de expressão das experiências de agonia e êxtase.
Bacon mesmo fez questão de enfatizar seu interesse pela beleza da boca, por suas cores, pela dificuldade de reproduzir suas texturas na pintura. Também era fascinado por outros artistas que pintaram o grito humano, como Caravaggio em sua "Medusa", Poussin em seu "Massacre dos Inocentes" e pela sequência do grito em "O Encouraçado Potemkin".
A boca tinha ainda uma conotação homossexual, que talvez seja a mais profunda e mais obscura.
Folha - A mostra que você organiza para a Bienal pode ser comparada com a retrospectiva que você curou para a Tate em 1985?
Dawn -
Eu gostaria muito de pensar que existem relações entre as duas mostras, mas a que organizo para a Bienal é muito menor. São similares na intenção de apresentar tantos aspectos quantos possíveis, com trabalhos de todos os períodos de sua carreira.
Folha - Quem cedeu trabalhos para a Bienal?
Dawn -
Existem trabalhos da Tate Gallery, da Hayward Gallery, do Centro Georges Pompidou, em Paris, e de coleções particulares que não querem ser divulgadas.
Teremos as telas "Study of Isabel Rawsthorne" (1966), "Study for Portrait of Van Gogh 6" (1957), "Portrait of Michel Leiris" (1976), o tríptico "Studies from the Human Body" (1970) e um auto-retrato de 1971.
Folha - Bacon se colocava na tradição da pintura figurativa, mas a transformava de maneira absolutamente pessoal. Você acha que ele se colocava na tradição ou na vanguarda da pintura?
Dawn -
Ele atuou nos dois campos, simultaneamente e de maneira paradoxal. Ele era uma espécie de Van Gogh, pela forma como reinventava a pintura. Ele se aproximou do surrealismo de maneira pessoal e nova. Ele propunha novas formas de criar imagens, formas de escapar do academicismo, mas também sabia do extremo valor da tradição da pintura.
Folha - O fato de a arte contemporânea inglesa ser tão figurativa é uma influência de Bacon? Ele tem discípulos?
Dawn -
Não saberia dizer se a arte britânica é mais figurativa que em outros países, mas acredito que os jovens britânicos estão mais interessados em Duchamp ou Beuys.
Não acredito que ele tenha seguidores. As pessoas falam de uma escola de Londres, com Francis Bacon, Lucian Freud, Frank Auerbach e Michael Andrews. Esses quatro artistas tinham ligações, mas trabalhavam de maneira diferente a tradição figurativa. Não houve uma escola.
Folha - Bacon me parecia muito autocentrado, egoísta...
Dawn -
Não acredito que ele fosse egoísta. Ele pintava argumentos fortes, provenientes de tragédias gregas ou baseados em poemas de T.S. Eliot, argumentos que confirmam a possibilidade da tragédia humana.
Bacon estava muito interessado na figura solitária na tela, que pode estar elevada ou terrivelmente acuada. A "Orestíada", de Ésquilo, o obcecava, mas ele não poderia pintar uma tragédia grega literalmente sem se tornar um pastiche. É muito difícil pintar esse tipo de tormento, mas Bacon chegou perto na transmissão do fascínio desses personagens gregos para os dias de hoje.
Folha - Bacon dizia que não tinha qualquer interesse por teorizações de sua obra. Você acha que o espectador pode ter prazer sem conhecer as teorias sobre ele?
Dawn -
Acho que sim. Bacon sempre acrescenta algo à experiência de qualquer um. Seus trabalhos são tão poderosos que todos podem se identificar de alguma forma, pois tratam de experiências que envolvem o espectador.



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