São Paulo, sexta, 10 de julho de 1998

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GASTRONOMIA
Taças, para provar azeite como se prova o vinho

NINA HORTA
especial para a Folha

Aos cinco anos, iniciada por Natália, a italianinha, aprendi a comer pão com alho e azeite. A menina cortou o pão, picou bastante alho cru por cima e deixou cair um fio fino de azeite.
Polvilhou sal e me mostrou como se apertava tudo com força para que nada se perdesse.
Naquela hora fui fisgada para sempre. Qualquer nome que adotasse, aquele era e seria sempre meu prato preferido. "Bougnotte" na França, delícia que rivaliza com o foie gras. "Bruschetta" na Itália, "brissa" em Nice. Na Toscana só pão e sal, pimenta, é a "fettunta". No verão sofistica-se mais um pouco, se é que isso é possível, com uma fatia de pão, rodelas de tomate, manjericão amassado e queijo pecorino.
Acontece que, burramente, fiquei nisso a vida inteira. Só comendo. O mundo é tão cheio de novidades que não dá para apreciá-las todas como seria devido. Era bom e bastava.
Há algumas semanas me arrependi de tantos anos desperdiçados. Fui a um festival de culinária mediterrânea aqui no Brasil. E o que me esperava além de boa comida e boa bebida?
Natália, a italianinha, rediviva, também portuguesa, também espanhola, transformada nos organizadores do festival.
O objetivo deles, apesar de envolvido em mais sofisticação, era o mesmo da menina de antanho. Converter meu paladar mineiro, paulista, carioca, baiano, brasileiro, chamar minha atenção para o azeite de oliva, fazer com que eu o provasse e dele nunca mais me esquecesse.
Espertos. Na verdade o mundo inteiro, o mundo que não tem azeitonas, está se abrindo para o assunto.
A surpresa foi grande ao chegar a um grande auditório e encontrar uma mesinha para cada convidado. Nela, rebrilhavam taças de azeites variados.
Taças, sim senhores. Para se provar o azeite como se prova o vinho. Ao lado, fatias de maçã, pão e água para limpar o paladar entre uma degustação e outra. Era tomar um golinho, deixar que ele descesse até as papilas da base da língua e deixá-lo lá um pouco, antes de engoli-lo.
Na nossa frente as taças e uma folha de papel para as notas e observações dos atributos positivos e negativos, poucas sugestões, é claro, para o bando de novatos no assunto.
Acontece que nós, que horas atrás éramos o auge da ignorância, depois de uma bela aula, portuguesa, com certeza, já falávamos e sentíamos, de verdade, num deslumbre, num vislumbre, os estilos.
Agressivos, rústicos, finos, elaborados, macho e fêmea. Cheiro verde de grama recém-cortada, os amargos e apimentados, os picantes, os densos, os frutados. Sentimos passas e tâmaras, acredite se quiser, minha pobre Natália das corridas de pegador pelas calçadas.
Em matéria de gosto vão pensar que estou exagerando, adjetivando, abusando de azeites como se fossem esnobes. Não, juro que não. De onde terão arrancado aquelas azeitonas? As Natálias devem estar se esforçando ao máximo para alcançar o mercado brasileiro. Sentia-se gosto de maçã, lichia, violeta, amêndoa, flor, nozes, chocolate...
Dos defeitos que seriam ranço, mofo, sabão, gordura tiveram a delicadeza de nos poupar, graças ao bom Pai.
Provamos portugueses doces e decadentes, espanhóis leves como plumas e italianos ásperos e rascantes.
Que prazer deve ser morar onde moram também as azeitonas, regiões de oliveiras de prata, e de manhã correr aos moinhos atrás do azeite leve para as vagens frescas, um mais amarguinho para as favas, e um etéreo e fresco para as vieiras e mariscos.
Um novo continente a ser descoberto. Mania, moda, civilização? O "az-záit", termo árabe, quer dizer sumo de azeitonas. A palavra nos fala além de cores e sabores e cheiros, das variedades da terra, da idade, da colheita. Quem nos ensinava era ora um espanhol, ora um português, tão português era ele, que precisámos usar fones de ouvido com tradução simultânea para entendê-lo, pois.
O melhor de tudo é que não tocaram em nomes, em marcas, não deram nome aos bois, não se exaltou um produtor. A conclusão a que chegamos todos é que há uma enorme gama de bons azeites extravirgens, virgens (parece aquela rapariga meio grávida, não?) e os refinados. E o que manda na escolha é o nosso gosto.
Só tenho a triste suspeita que nunca mais na minha vida vou ter acesso àquelas papas finas de azeites escolhidos para seduzir.
Mas, assim mesmo, encantada, viva Natália, viva a fettunta!



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