São Paulo, quinta-feira, 10 de agosto de 2000


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SALZBURGO
Peças de Berlioz e Gluck abordam o conflito mitológico
Festival traz duas visões da Guerra de Tróia

JOÃO BATISTA NATALI
ENVIADO ESPECIAL A SALZBURGO

Hector Berlioz (1803-1869) e Christoph Willibald Gluck (1714-1787) estão entre os compositores que exploraram na ópera as tragédias individuais provocadas pelos desdobramentos da Guerra de Tróia. São visões diferentes, sublinhadas com muita sutileza -musical e teatral- por duas produções deste ano do Festival de Salzburgo, na Áustria.
Gluck, autor de 107 peças líricas, das quais "Orfeu e Eurídice" é a mais conhecida, embarcou no mito pelo que ele contém de estímulo ao homicídio na família de Agamenon. O monarca grego, em troca de augúrios em sua luta contra os troianos, aceita sacrificar a filha Ifigênia, que não chega a ser morta e é mantida como sacerdotisa pela deusa Diana.
Em "Iphigénie en Tauride", estreada em Paris em 1779, Agamenon é morto por sua mulher, Clitemnestra, para vingar o suposto sacrifício da filha. Mas a mesma Clitemnestra é assassinada por seu filho Orestes, em represália ao assassinato do pai. Por fim, Ifigênia e Orestes se encontram.
Berlioz, abastecendo-se diretamente em Virgílio para a composição de "Les Troyens" (montada pela primeira vez em versão integral só em 1969, sob a direção de Colin Davis), entra mais diretamente na guerra. Cassandra é a única a saber -e a alardear sem que a ouçam- que há soldados escondidos dentro do cavalo de madeira ofertado pelos gregos.
Consumada a traição e a derrota dos troianos, ela comanda o suicídio coletivo das virgens. Enéas é incumbido pelos deuses de refundar Tróia na península itálica. Detém-se a caminho em Cartago, onde se apaixona pela rainha Dido, que recorre ao suicídio quando o amante a abandona para prosseguir viagem.
Salzburgo tem como tradição não se deter na literalidade dos libretos, que passam a servir de mero pretexto para a construção de novas alegorias.
Em "Iphigénie", de Gluck, e com o auxílio da Orquestra do Mozarteum regida com extrema precisão por Ivor Bolton, um especialista em música do século 18, o diretor cênico Claus Guth lança mão, com felicidade, de recursos não inéditos no teatro.
A tragédia, transplantada para um ambiente aristocrático do século 18, é encenada pelos cantores e, ao mesmo tempo, por bonecos, que são dublês de seus personagens. Os dublês fazem explicitamente aquilo que os cantores apenas sugerem, os homicídios em família e os presságios insinuados pelos deuses.
O resultado é belíssimo, já que, em lugar de levar o público à leitura mais nítida da história, o que ocorre é a multiplicação das ambiguidades, que aliás estão na base da própria música de Gluck.
Destaque para a norte-americana Susan Graham como Ifigênia, uma máquina portentosa de emissão de sons aveludados.
Com Berlioz, numa ópera desprezada pela historiografia francesa e de difícil montagem por suas quatro horas de duração, há um borbulhar melódico constante, enfatizado pelo maestro francês Sylvain Cambreling e pela Orquestra de Paris.
Mas o espetáculo é dominado pela encenação de Herbert Wernicke, um diretor na tradição de Jorge Lavelli e Pier-Luigi Pizzi. O cenário, branco e circular, é rompido por uma brecha vertical ao fundo, em que aparecem os indicadores temporais e geográficos -mar, noite estrelada- da ação.
Os troianos se vestem como soldados da Segunda Guerra Mundial. As cores das luvas prenunciam o desfecho do enredo -sangue para luvas vermelhas, pacificação para luvas azuis- num acontecer incessante de coisas em que Berlioz mobiliza um poder descritivo bem mais intenso que em "Benvenuto Cellini", sua conhecida ópera de juventude.
Uma outra voz norte-americana se destaca. A soprano Deborah Polaski, a Isolda regida por Abbado há dois anos em Salzburgo, interpreta Cassandra e Didon. E, céus, como interpreta!


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