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SALZBURGO
Peças de Berlioz e Gluck abordam o conflito mitológico
Festival traz duas visões da Guerra de Tróia
JOÃO BATISTA NATALI
ENVIADO ESPECIAL A SALZBURGO
Hector Berlioz (1803-1869) e
Christoph Willibald Gluck (1714-1787) estão entre os compositores
que exploraram na ópera as tragédias individuais provocadas pelos
desdobramentos da Guerra de
Tróia. São visões diferentes, sublinhadas com muita sutileza
-musical e teatral- por duas
produções deste ano do Festival
de Salzburgo, na Áustria.
Gluck, autor de 107 peças líricas,
das quais "Orfeu e Eurídice" é a
mais conhecida, embarcou no
mito pelo que ele contém de estímulo ao homicídio na família de
Agamenon. O monarca grego, em
troca de augúrios em sua luta
contra os troianos, aceita sacrificar a filha Ifigênia, que não chega
a ser morta e é mantida como sacerdotisa pela deusa Diana.
Em "Iphigénie en Tauride", estreada em Paris em 1779, Agamenon é morto por sua mulher, Clitemnestra, para vingar o suposto
sacrifício da filha. Mas a mesma
Clitemnestra é assassinada por
seu filho Orestes, em represália ao
assassinato do pai. Por fim, Ifigênia e Orestes se encontram.
Berlioz, abastecendo-se diretamente em Virgílio para a composição de "Les Troyens" (montada
pela primeira vez em versão integral só em 1969, sob a direção de
Colin Davis), entra mais diretamente na guerra. Cassandra é a
única a saber -e a alardear sem
que a ouçam- que há soldados
escondidos dentro do cavalo de
madeira ofertado pelos gregos.
Consumada a traição e a derrota dos troianos, ela comanda o
suicídio coletivo das virgens.
Enéas é incumbido pelos deuses
de refundar Tróia na península
itálica. Detém-se a caminho em
Cartago, onde se apaixona pela
rainha Dido, que recorre ao suicídio quando o amante a abandona
para prosseguir viagem.
Salzburgo tem como tradição
não se deter na literalidade dos libretos, que passam a servir de
mero pretexto para a construção
de novas alegorias.
Em "Iphigénie", de Gluck, e
com o auxílio da Orquestra do
Mozarteum regida com extrema
precisão por Ivor Bolton, um especialista em música do século 18,
o diretor cênico Claus Guth lança
mão, com felicidade, de recursos
não inéditos no teatro.
A tragédia, transplantada para
um ambiente aristocrático do século 18, é encenada pelos cantores
e, ao mesmo tempo, por bonecos,
que são dublês de seus personagens. Os dublês fazem explicitamente aquilo que os cantores apenas sugerem, os homicídios em
família e os presságios insinuados
pelos deuses.
O resultado é belíssimo, já que,
em lugar de levar o público à leitura mais nítida da história, o que
ocorre é a multiplicação das ambiguidades, que aliás estão na base da própria música de Gluck.
Destaque para a norte-americana Susan Graham como Ifigênia,
uma máquina portentosa de
emissão de sons aveludados.
Com Berlioz, numa ópera desprezada pela historiografia francesa e de difícil montagem por
suas quatro horas de duração, há
um borbulhar melódico constante, enfatizado pelo maestro francês Sylvain Cambreling e pela Orquestra de Paris.
Mas o espetáculo é dominado
pela encenação de Herbert Wernicke, um diretor na tradição de
Jorge Lavelli e Pier-Luigi Pizzi. O
cenário, branco e circular, é rompido por uma brecha vertical ao
fundo, em que aparecem os indicadores temporais e geográficos
-mar, noite estrelada- da ação.
Os troianos se vestem como soldados da Segunda Guerra Mundial. As cores das luvas prenunciam o desfecho do enredo
-sangue para luvas vermelhas,
pacificação para luvas azuis-
num acontecer incessante de coisas em que Berlioz mobiliza um
poder descritivo bem mais intenso que em "Benvenuto Cellini",
sua conhecida ópera de juventude.
Uma outra voz norte-americana se destaca. A soprano Deborah
Polaski, a Isolda regida por Abbado há dois anos em Salzburgo, interpreta Cassandra e Didon. E,
céus, como interpreta!
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