São Paulo, quinta-feira, 10 de agosto de 2006

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Crítica

Documentário usa soluções já muito gastas

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

As questões que "Intervalo Clandestino", de Eryk Rocha, propõe estão em seu primeiro minuto de duração. Mais precisamente, no momento em que, com a tela escura, alguém sustenta que, se o que se está produzindo não é para passar na televisão, então é como se não existisse, como se fosse nada. Não é um início animador: sugere que vai começar um desses filmes cujo assunto são o próprio filme, o cinema (brasileiro em especial) e seus problemas. Não é isso que acontece, no entanto. Desde que a imagem aparece, o espectador é confrontado com um, digamos, caos verbal brasileiro. Lá está "o povo" (quase sempre são pessoas pobres que se manifestam), sustentando que somos um país rico, rico. Mas onde está essa riqueza mitológica? Onde devemos procurá-la? O filme então passa a se dirigir aos políticos e à política. O povo fala. Logo nos vemos engolfados por uma cacofonia fabulosa, produzida pela somatória de vozes, cada qual com sua solução para o problema ou, pelo menos, sabendo explicar porque estamos na pior. Enveredamos por nossos governos: FHC, Lula, o tempo de Getúlio Vargas, o de Jango etc. A soma das opiniões discrepantes quase obrigatoriamente nos conduz à conclusão de que dos políticos não podemos esperar salvação.

Semelhança
Percebemos então que o documentário "Intervalo Clandestino" tem com a TV uma semelhança profunda: ambos são lugares em que vigora o taumaturgo. Na televisão, ele é o político, Silvio Santos ou o pastor evangélico. No filme, o anônimo fala com a mesma ênfase, a mesma convicção de enunciar a verdade. Mas enuncia nada mais do que sua opinião. Todas as falas que ouvimos parecem compor um relatório do grande esforço de desinformação desenvolvido no Brasil nas últimas décadas. Vendo o filme -e abstraindo o fato de que ele próprio constitui um discurso-, acreditando que as palavras ali emitidas representem o pensamento popular, podemos concluir, sem grande dificuldade, que o brasileiro, basicamente, só fala besteira. É possível. Mas voltemos ao início, em que a voz assegura que, se uma imagem não aparece na TV, é como se não existisse. A voz que diz isso tem razão em vários sentidos. Um deles: a população só tem acesso a imagens pela televisão desde que o cinema deixou de ser uma diversão popular. Por isso essa voz pode questionar "Intervalo Clandestino": se este filme, que busca desnudar o vazio de nossas palavras, de nossa política e até de nossa fé, não passa na TV, ele necessariamente se dirige a outras pessoas que não as interpeladas pelo documentarista. Qual o sentido disso então? Talvez ele esteja nas imagens de um lixão, com uma "Aquarela do Brasil" distorcida na banda sonora. "Intervalo Clandestino" é, em um nível, um filme pré-histórico, que retoma soluções que o cinema brasileiro já usou e gastou em anos passados; em outro, um bem-intencionado, mas frustrado, trabalho de um cineasta que procura entender uma população pobre da qual está visceralmente separado pela segregação de classe (nesse sentido, integra o que se pode denominar "cinema brasileiro de pobre"); e, por fim, mais um relatório de desilusões com o Brasil, num filme que, em linhas gerais, não consegue trilhar senão caminhos já trilhados.


INTERVALO CLANDESTINO
 
Direção Eryk Rocha
Produção: Brasil, 2005
Quando: em cartaz a partir de amanhã no Frei Caneca Unibanco Arteplex (em projeção digital)



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