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CARLOS HEITOR CONY
Hércules exausto
Com uma simples ida da cama à geladeira, transgredi as regras morais e estéticas
CADA UM tem a frustração que
merece: a minha é a de não
ter estômago suficiente para
comer tudo o que tenho vontade -e
na quantidade adequada. Gosto de
coisas complicadas, mas não desprezo um caldo de galinha a preceito, com gosto de infância e de mãe.
Sempre ouvi dizer que um bom caldo de galinha não faz mal a ninguém.
Mesmo assim tenho a cautela de não
abusar, reservando-o para momentos especiais.
"Spiritus promptus est, caro autem infirma", dizia o Marcelino de
Jesus Caldas, ex-seminarista no
passado e teosofista no presente. Se
a carne é fraca, o espírito é forte. Já
saí do cinema com uma fome de devorar javalis, codornas, carnes finas,
raras e -tal como os vinhos que merecem este adjetivo- capitosos.
Outro dia, lendo um péssimo romance de época, saí do tálamo e invadi a cozinha em busca do que mastigar. No livro, o personagem tomava parte num bródio medieval. Além
dos citados javalis, havia outras
iguarias mastigadas aos pedaços, à
luz dos archotes, regadas com vinhos de nobres safras e nobilíssimas
origens.
Para despertar a fome, certos filmes e leituras servem. Quando leio a
chamada literatura erótica, não costumo me entusiasmar. Pelo contrário: quanto mais picante a história
ou a linguagem usada, menos libidinoso fico.
Mas em se tratando de comilanças, quando bem descritas, em ambiente adrede, adquiro uma fome
brutal, capaz de devorar vales e
montanhas de comida.
Mas a frustração não é por qualquer especialidade. Se assim fosse,
eu me abasteceria em qualquer tasca da vida. Devoraria empadas,
aqueles ovos cozidos e coloridos dos
bares suburbanos, as carrocinhas
que vendem o angu do Gomes, os
pratos feitos dos botequins suspeitíssimos. Meu apetite, em horas tais,
se desloca para pratos esquisitos, o
citado javali aparecendo em primeiro plano.
Nunca vi um javali morto ou vivo.
Nunca pisei em restaurante ou casa
de família em que servissem esse tipo de alimária (desconfio que javali
não chegue a ser alimária, mas deixe
como está).
Tampouco adivinho o gosto que
deve ter a carne de javali. Mas imagino a cena que já li em milhões de livros, assisti em milhões de filmes: a
entrada triunfal do espécime, devidamente embalado em enorme travessa de prata do mais fino lavor (se
não for prata do mais fino lavor, o javali vira uma... bem, deixe também
para lá).
Inchado pelo forno, pelas chamas
que aqueceram suas tenras viandas
(vai ver que a carne do javali não é
tenra, mas, em meus sonhos, ela é
tenra, rosada, lambida pelo valor de
eficientes braseiros), o animal chega
à minha frente. Rasgo-lhe o lombo
com destreza, arranco-lhe o naco
tostado, cor de ouro.
Nessa altura do devaneio, nem
preciso comer o javali, pois já estou
empanturrado dos restos do jantar
que me serviram. Volto ao leito,
prostrado, ofegante como um Hércules exausto. Tomo um antiácido
para rebater o peso das carnes ingeridas e durmo em beatitude.
Sonhar -dizia o bardo- é mais ou
menos como morrer. Morro feliz,
entupido. Penso vagamente que habito uma terra em que 50% da população passa fome ou necessidade de
boca.
Curiosamente, essa idéia não me
embrulha o estômago. Pelo contrário: aumenta meu obsceno prazer.
Em poucos minutos, sem cometer
nenhum esforço físico, com uma
simples ida da cama à geladeira e vice-versa, consegui transgredir todas
as regras morais e estéticas.
Talvez seja isso que me dê maior
satisfação: fazer um pacote dos pecados capitais todos, a luxúria, a gula, a inveja, a soberba e os demais -e
folgar por nada. E por nada me considerar regalado, ao menos pelo espaço de uma noite e pelo tempo de
uma bacanal solitária e estúpida.
Nos filmes de Carlitos, há sempre
uma cena em que ele está comendo
ou querendo comer. Outro dia, na
TV, vi "A Festa de Babette". Na trama, uma ex-chefe do Café Anglais,
de Paris, prepara um banquete para
convidados especiais. Oitenta por
cento do filme se ocupam de mostrar como ela recheava as codornas,
fazia a sopa de tartaruga, o patê de fígado de ganso.
Corri à geladeira. Não havia javali
no estoque. Enfrentei os restos de
um pernil assado e fui dormir como
um Hércules exausto, mas saciado.
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