São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2008

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Um minotauro no Municipal

Ópera "Ariadne em Naxos", do alemão Richard Strauss, estréia no próximo domingo em SP; reportagem assume o papel do Minotauro e revela os bastidores dos ensaios

Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem
A cúpula, sótão do Teatro Municipal, onde os cantores ensaiam "Ariadne em Naxos"

MINOTAURO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sei que me acusam de soberba, talvez de misantropia e talvez de loucura. Tais acusações (que eu castigarei no devido tempo) são irrisórias. O fato é que sou único, filho de rainha e meu espírito está preparado para o grande.
Por isso, jamais compreendi por que esse compositor alemão Richard Strauss escreveu sobre Ariadne, e não sobre mim. Ariadne é a fêmea que deu a Teseu um novelo de lã para que ele saísse de meu labirinto em Creta. Isso após me matar (castigarei a ambos no devido tempo).
Agora esta ópera, "Ariadne em Naxos", será apresentada no Teatro Municipal de São Paulo pela primeira vez. Eu quase não apareço em cena. Não tenho nem sequer uma fala. Cento e cinqüenta e oito pessoas estão envolvidas nessa produção. Castigarei a todos no devido tempo. Por ora, estou curioso para saber quem virá assisti-la. Serão touros ou homens? Serão talvez touros com cabeças de homem? Ou serão como eu?
De qualquer forma, os ingressos são baratos: entre R$ 10 e R$ 40, à venda nas bilheterias do teatro, pelo telefone 0/xx/11/6846-6000 ou no site www.ticketmaster.com.br. A estréia é no domingo que vem e serão apenas quatro récitas, nos dias 17, 19, 21 e 23.
"Ariadne em Naxos" é um espetáculo dividido em dois atos. No primeiro ato, uma companhia se prepara para apresentar uma ópera na festa de um novo rico. Tudo vai bem até que o mordomo avisa que a ópera terá que dividir seu espaço com uma trupe de comediantes. No segundo ato, vemos a ópera encenada pela companhia, com os devidos apartes dos comediantes, como se fôssemos um dos convidados daquela festa. Chamam a esse curioso recurso de metalinguagem. Nesse segundo ato, Ariadne foi abandonada por seu amado Teseu na ilha de Naxos. Bem feito para a fêmea.

Legendas em português
Os cantores contam essa história em alemão, mas há legendas projetadas em português. Tanto faz para mim, já que não leio nem mesmo o grego. Jamais retive a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não permitiu que eu aprendesse a ler.
Vago pelas sombras do Municipal e lembro de minha casa. São tantas escadarias recônditas, corredores estreitos, elevadores ocultos e andares obscuros (oito ao todo, mas poderiam ser infinitos) que o teatro vira um labirinto. Em cima de tudo, acima do belo lustre que enfeita o teto da sala de espetáculos, esconde-se um sótão que serve de sala de ensaios. Chamam-lhe cúpula.
Ali na cúpula, o diretor cênico e cenógrafo, André Heller-Lopes, ensaia com os cantores. "Não é música. Não é teatro. É ópera", ouço o diretor anunciar. "Vamos refazer a cena em que o mordomo anuncia a trupe de comediantes", ele sorri ao falar. Não é um homem colérico (como era o rei Minos, de Creta, que ordenou a construção do labirinto). Mas é um diretor detalhista, especializado em óperas, já trabalhou nessa mesma peça em Londres: "De novo, desde o começo".
Ariadne é interpretada por Eiko Senda, japonesa que mora no Uruguai e que tem uma voz soprano lírico-spinto (aguda, mas com força e densidade). Ela traz o filho de 3 anos para o ensaio. O nome do menino é David, mas ele só quer ser chamado de Homem-Aranha.
Zerbinetta, outro papel importantíssimo dessa ópera, é de Andrea Ferreira, brasileira soprano coloratura (alcançam notas mais agudas com mais agilidade) que mora na Itália. E o papel do Compositor pertence à mezzo-soprano (voz mais encorpada que a soprano e com extensão maior na região central-grave) Denise de Freitas. Esse é um "trouser role", ou "travesti role", como quiser, em que uma mulher interpreta um homem.
Essas três são as principais, mas não as únicas. São 17 os solistas convidados. Há ainda o tenor (faixa de sons mais aguda que pode ser emitida, no canto lírico, por um indivíduo do sexo masculino) Marcelo Vannucci, o barítono (mais grave, porém não tanto quanto a chamada baixo) Leonardo Neiva e muitos outros (a quem castigarei no devido tempo, isso deve ficar bem claro).

Monstro na rua
Enquanto esses ensaiavam na cúpula no início da semana passada, os 36 músicos, todos da Orquestra Sinfônica Municipal, faziam a sua parte na sala Olido, a um quarteirão de distância. Não podiam usar o palco do Municipal porque ali os 15 cenógrafos montavam o cenário da ópera.
Resolvi acompanhar um pouco do ensaio da orquestra e fui para a rua, certa manhã. Da praça Ramos para a avenida São João descortinava-se apenas um quarteirão, como disse, pela Conselheiro Crispiniano. Mas o choro desvalido de um menino e as toscas lamúrias da multidão disseram que haviam me reconhecido. O povo rezava, fugia, prosternava-se; alguns juntavam pedras. Um deles, creio, escondeu-se no antigo Mappin, hoje Casas Bahia. Não em vão minha mãe foi rainha; não posso me confundir com o vulgo, embora minha modéstia deseje. O fato é que sou único.
Antes de voltar ao labirinto, porém, assisti a um pouco do ensaio. Esse regente, José Maria Florêncio, me lembra um pouco mais o rei Minos. "Eles morrem de medo de mim", ouço-o dizer, em referência aos músicos que comanda. "É que sou um maestro de 46 anos com experiência de 70. A realidade da Polônia é diferente, com óperas e concertos encarados como atividades cotidianas." Ele trabalhou lá por 20 anos e agora é o titular da orquestra do Teatro Municipal.
A regência o consome. Ele usa uma toalha tanto quanto a batuta. Sua camisa fica empapada de suor. "Por um ano, me pesei depois dos ensaios e concertos. Perco entre um quilo e um quilo e meio a cada vez. O estresse do ensaio é maior. É preciso estar aceso, notar os erros. Se passar um errinho, perco a autoridade", ensina.

Ensaio de orquestra
"Viola, celo, fagote. mais sofrimento, mais chorado", diz Florêncio, enquanto estala os dedos. Os músicos obedecem, é claro.
"Ouçam como vocês estão cantando! Desse jeito ninguém vai ouvir. Todo mundo vai dormir! Alegretto, alegretto!", diz Florêncio. Os cantores obedecem, é claro.
Minha curiosidade me impele a saber qual desses instrumentos é o mais importante, mas isso é difícil de descobrir entre os membros dessa orquestra.
"O primeiro violino orienta o maestro. É um cargo de liderança", diz Pablo de Leon, primeiro violino. "O celo conduz toda a harmonia da obra", discorda Raiff Dantas, líder dos celos. "O clarinete conduz as vozes. É como um outro solista", opina Luis Afonso Montanha, clarinetista. "O oboé é o instrumento que afina a orquestra. Ouve-se muito bem", acredita o oboísta Alexandre Ficarelli.
Voltando à cúpula do labirinto, acompanho mais um pouco do ensaio cênico. Zerbinetta, dos comediantes, beija o Compositor na boca, numa tentativa de convencê-lo que sua ópera não será destruída pelos apartes de comédia. O Compositor se desvencilha de Zerbinetta. O diretor sorridente sorri novamente: "Tenha uma reação mais violenta, como se ela tivesse machucado seu braço".

A punição
Essa frase me desperta lembranças profundas. Penso em quando, a cada nove anos, entravam em minha casa nove homens para que eu os livrasse de todo o mal. Me imagino naquele tempo, ali na cúpula do Teatro Municipal de São Paulo.
Ouço as vozes dos cantores da ópera e corro alegremente a seu encontro. A cerimônia dura poucos minutos. Cai um depois do outro sem que eu ensangüente as mãos. Onde caem, ficam, e os cadáveres ajudam a diferenciar a cúpula dos outros andares.
Mas é apenas um devaneio. Eles serão castigados, mas, por ora, precisam estrear essa ópera em São Paulo. (IVAN FINOTTI)


Trechos em itálico retirados de "A Casa de Astérion", do livro "O Aleph", de Jorge Luis Borges (Companhia das Letras). No conto, o Minotauro divaga sobre sua vida e sua morte.


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