São Paulo, Terça-feira, 10 de Agosto de 1999
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ARNALDO JABOR
Um encontro marcado no fundo do abismo

O abismo é o grande desejo nacional. Esses pessimistas que vivem reclamando do Brasil, dizendo que iremos para o "fundo do abismo", estão errados. O abismo é bom.
Sou um otimista e declaro que o Brasil está em um belo rumo, e que a desgraça é a nossa salvação. Só o abismo nos redimirá. Vamos parar com o sonho ridículo, gestado na USP por intelectuais iluministas, de que a "razão" poderia nos salvar com reformas de velhas estruturas. Ficou tudo claro.
Agora, que seria a hora de mudar, ACM e Barbalho, a dupla do barulho, mostram que não haverá mudança. Agora, que está na hora do ajuste fiscal, criou-se esse "combate" irreal à pobreza. Fala-se em mudança para que nada mude.
FHC está sem prestigio? Vamos pular do navio. Há urgência nacional? Dane-se. Só interessam os partidos, as "ambiçõezinhas" criando factóides diversionistas em volta de um intelectual hesitante, há quatro anos oscilando como um "João Bobo" na ciranda unida da esquerda sem programa e da direita patrimonialista. Sim, é a volta triunfal do velho Brasil canalha... sem meias palavras... sem disfarces...
FHC errou muito nesses anos. Foi frio, não se comunicou com a opinião pública, subestimou resistências, não teve paixão militante por seu projeto, mas tentou uma agenda de reformas do Estado e da sociedade que poderiam curar doenças endógenas de nossa formação. Para isso, uniu-se a uma direita pseudo-moderna. Deus, foi um luxo!...
Senadores e deputados de terno brilhante, políticos conchaveiros, estelionatários de bancos estaduais, descoladores de propinas, "corruptozinhos" de gabinete, todos passaram a ostentar um toalete de reformistas, arrotando palavras como "globalização", "enxugamento do Estado" e "terceira via". Embora sempre estivessem eticamente no século 17, pois são donatários, aventureiros e degredados de gravatinha Hermès, passaram a se considerar acadêmicos da "elite cultural".
Fisiológicos e analfabetos começaram a dizer, com afetada naturalidade, no "Piantela": "Hoje passamos uma tarde agradabilíssima no Alvorada, eu e o Presidente... discutindo Giddens..."
A maior obra de FHC foi ter emprestado "dignidade" a aventureiros que se autonomearam "modernos". E agora, depois de quatro anos em que o infernizaram com exigências, com vaidades pequenas, com demandas e pleitos de currais remotos, vão se afastar do presidente "em baixa".
Depois de criarem uma sabotagem por semana, numa aliança surreal com a oposição albanesa, diante do olhar rancoroso e invejoso da academia e do desinteresse de intelectuais e artistas que não metem a mão em cumbuca complexa (pois vivem à custa dos simplismos que "dão Ibope"), agora, depois que conseguiram apodrecer a reforma política do país, todos vão desfrutar do fracasso que provocaram comendo até os ossos do banquete que destruíram. Mas não pensem que estou pessimista.
Acho que se aproxima a verdade nacional. Sempre tivemos uma funda atração pela catástrofe. E hoje começa a ficar claro que só o abismo nos salvará. Como? Pelo escancaramento da verdade em nossas fuças, pois "só a verdade é revolucionaria", como dizia Maiakovski. E o abismo será bom, pois só a ruptura do tecido social nos dará consciência de nosso destino.
Como escorpiões, matamos o sapo que nos transporta, pois precisamos errar até o fim para saber quem somos. O abismo é bom para dar sossego à direita, que impedirá a democracia, e é bom para dar às velhas esquerdas a chance de saborear o caos, pois poderão de novo falar em "revolução", com gestos indignados e slogans superados.
E, como depois o país cairá certamente na mão de um populista de direita qualquer, com apoio militar, a esquerda poderá sofrer em paz, no fundo de seu masoquismo ignorante.
O abismo vai ser bom porque teremos de novo um autoritarismo reacionário (e aí vocês verão o que é "entreguismo neoliberal"), que saciará nossa fome de tragédia. Há um prazer suicida em ver o governo fracassar, há um desejo sexual pela volta da hiperinflação. Vai ser lindo!
A Previdência vai quebrar e não haverá dinheiro para pagar os velhinhos, pois o dinheiro só pagará os marajás, claro. E os idiotas dirão: "Virgem! Então era necessária mesmo a tal reforma da Previdência?!". E o abismo será bom porque, como não se fez ajuste fiscal nenhum, quebrarão os Estados e seus 5.000 novos municípios oportunistas, um a um, numa "alagoização" progressiva e didática.
E ninguém vai receber salário, e ficará claro porque era necessária a reforma administrativa. E quebrarão o Banco do Brasil, a Caixa, a hiper voltará e os ministros da Suprema Indústria das Liminares (que, aliás, acabam de dar ganho de causa à três famílias de 1945, que vão receber R$ 3,5 bilhões pelo terreno do Aeroporto do Galeão) vagarão sem rumo nos palácios de mármore, como urubus deprimidos.
E, quando houver a nova crise internacional, fugirá todo o dinheiro daqui, quebraremos e ficará claro o óbvio do "ajuste fiscal" que não se fez. O abismo é bom porque vai haver a moratória da dívida interna, da dívida externa e poderemos começar do zero, do lixo, do nada. O abismo é nossa verdade, nosso desejo profundo.
Temos um encontro de amor marcado no fundo do abismo. O abismo é bom porque raspa as aparências, pois o que estraga o país é essa capa de normalidade, esse verniz de "racionalidade", é a mentira dessa falsa democracia representativa.
O abismo é bom para acabar com a empulhação de ouvir esses sujeitos chamados de "Excelência" falando em "interesse nacional", quando só pensam em seus currais. E tem a vantagem de que acabaremos com a miséria também. Pelo extermínio.
Tomara que chegue logo a verdade do abismo, porque será muito bom. Como já dizia Norman Mailer, é bom acabar com a ópera bufa para entrarmos definitivamente em nossa própria tragédia.


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