UOL


São Paulo, quarta-feira, 10 de setembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

Ilusões cinematográficas

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Desde o fim da guerra, Leni Riefenstahl aproveitou cada oportunidade para jurar que nunca foi nazista, que não era membro do partido nem nunca soube da deportação e assassinato em massa de judeus. Era apenas amiga de Hitler, e por isso lhe foi confiada a realização de obras capitais, como "O Triunfo da Vontade" e "Olímpia".
Aceite-se a auto-imagem de mulher alienada e busquemos nos filmes o ideário de Leni. "O Triunfo da Vontade" será de fato um documentário genial? Ou uma advertência para o uso meio indiscriminado que se faz da palavra genial?
O que se mostra ali é a convenção do partido nazista, e ninguém dirá que a Leni falta talento. Mas que talento é esse? Não, certamente, o de buscar a vida, o inesperado, o precário da existência. Leni foi, ali, uma artista da ordem unida, da solenidade -o caráter cenográfico e espetacular do nazismo nunca foi tão posto em relevo, e tão talentosamente, quanto em "O Triunfo da Vontade".
"Olímpia" é teoricamente mais inocente, menos politizado, apenas o filme oficial das Olimpíadas de 1936. Nas mãos de Riefenstahl, no entanto, concretiza-se o ideal hitlerista de beleza.
Os corpos perfeitos dos atletas são exaltados pelas câmeras, que decompõem seus gestos, registram seus esforços muito menos pela ótica da competição do que pela da perfeição. "Olímpia" é um filme apolíneo, retilíneo (como "O Triunfo"), ordenador. Para Leni como para Hitler, a beleza é a ordem.
Ocorre que Hitler é um personagem central do século 20, e nenhuma imagem exprime melhor do que a desses filmes sua concepção de mundo. Uma concepção que partilhou com milhões de alemães, para quem ordem e beleza eram uma coisa só; só podiam ser uma coisa só depois do caos do pós-Primeira Guerra Mundial.
Dessa maneira de ver o mundo Leni foi a principal intérprete. As exposições de arte nazista eram, até onde se pode saber (pelos filmes), coisas de um academismo extremo. O cinema de Leni Riefenstahl não sofre desse tipo de primarismo, talvez por isso seus filmes tenham sido praticamente banidos no pós-guerra: são boa propaganda, usam com enorme eficácia o poder irracional de convencimento das imagens.
Daí o absurdo da empreitada a que se dedicaram alguns liberais exaltados, ao compará-la a Eisenstein (pela coincidência de ambos viverem e produzirem em regimes ditos totalitários).
Eisenstein e Riefenstahl eram antípodas, na verdade. Ao primeiro incomodava profundamente a incidência da realidade na imagem de cinema, bem como sua irracionalidade. Boa parte de sua empreitada consiste em libertar o cinema da realidade e o espectador da ilusão das imagens.
Riefenstahl, ao contrário, acreditou e investiu profundamente na ilusão cinematográfica. Tanto que viveu até o fim na crença, ao que parece sincera, de que nunca foi nazista e de que nunca serviu ao nazismo.

Texto Anterior: Cinema: Morre Riefenstahl, cineasta do nazismo
Próximo Texto: Panorâmica - Evento: Debate lança livro de Renato Janine Ribeiro
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.