|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
Um quase linchamento
Nos EUA, ainda há quem busca provar que brancos ricos violentam mulheres pobres e negras
|
HÁ CENTENAS de universidades nos EUA, inclusive a
maioria das melhores, e elas
não se sustentam mediante o assalto
ao bolso dos contribuintes. Quem as
mantém funcionando são os alunos,
doações de ex-alunos, contribuições
de empresas que se beneficiam de
suas pesquisas e fontes similares.
Como essas verbas são finitas, cabe
às universidades competirem entre
si por todo centavo disponível, mostrando trabalho, atraindo bons alunos, contratando professores famosos, conquistando prêmios e medalhas, desde o Nobel aos esportivos.
A universidade Duke, em Durham, Carolina do Norte, é uma escola de médio porte, particular e de elite cujo prestígio cresceu ainda mais,
na virada dos anos 80/90, quando o
especialista em teoria literária Stanley Fish e outros, abraçando a ortodoxia da correção política, projetaram-lhe o nome no cenário nacional
como uma das instituições firmemente associadas às concepções da
história que, revisionistas e compensatórias, delegavam-lhes o papel
de corrigir antigas injustiças -reais
ou fictícias.
Se os eventos do último ano e
meio que levaram essa instituição
de ensino superior às manchetes
não estavam visceralmente associados a ela, é significativo, no entanto,
que tenham ocorrido em Duke. Foi
lá que, em março do ano passado,
eclodiu um escândalo envolvendo
uma "dançarina exótica" (stripper/
escort girl), Crystal Gail Mangum, e
o famoso time de lacrosse (jogo semelhante ao hóquei) da universidade. O que elevava a narrativa da trivialidade do "fait divers" à altura das
dimensões simbólicas foram menos
os fatos do que os participantes: ela,
pobre, negra e, é óbvio, mulher; eles,
homens brancos e afluentes. Com
tais personagens, qualquer narrativa, nos EUA, só poderia ter um desfecho adequado: aquele no qual ela
seria a vítima e eles, os culpados.
Tanto faz do quê.
No caso específico era de estupro
agravado. O time promovera uma
festa na casa de algum(ns) de seus
jogadores e contratou os serviços de
duas strippers. Depois de certa confusão e bate-boca, estas deixaram a
casa, e os rapazes deram a festa por
encerrada. Na mesma noite, Mangum, que saíra de lá bêbada, drogada
ou ambos, denunciou os jogadores.
Ela foi examinada num hospital,
submetida a testes de DNA etc. E é
aqui que entra o verdadeiro protagonista da história, o promotor de
Durham, Mike Nifong.
Ele acreditou ou fez de conta que
acreditou integralmente na moça e,
apesar de ela apresentar versões sucessivamente diferentes, até contraditórias, dos eventos, ele lhe tomou as dores e, ao mesmo tempo em que
iniciava uma investigação agressiva
e unilateral, levou logo o caso a público, de modo a obter para este o
máximo de publicidade, algo que de
fato conseguiu.
Quem sabe esta sua atitude tivesse
algo a ver com o seguinte: seu cargo é
eletivo, as eleições se aproximavam
e ele estava em desvantagem. Quase
metade da população da cidade é
afro-americana e os brancos são em
boa parte liberais. O fato é que, se
bem que ele tenha ganhado a eleição, as acusações de Mangum foram
se mostrando cada vez menos consistentes e os álibis dos três jogadores que acabaram sendo acusados,
cada vez mais sólidos. Finalmente,
os advogados destes descobriram
que o promotor ocultara resultados
dos testes de DNA e outras provas
que contradiziam seu caso. Os jogadores foram inocentados, e Nifong
não apenas afastado, como submetido a um inquérito que revogou sua
licença de praticar a lei, além de condená-lo a um dia de cadeia por mentir ao tribunal.
Não obstante ter se feito justiça
com os principais atores, Nifong e os
jogadores, há gente cujo comportamento ficou impune: a imprensa
pró-acusação, sobretudo o "New
York Times" (incrivelmente ainda
há no Brasil quem veja esse veículo
de esquerda como porta-voz do "sistema" americano); e o Grupo dos 88,
a saber, professores de Duke (quase
todos das humanidades, pouquíssimos das disciplinas científicas) que,
em linguagem ambígua, pré-julgaram e condenaram desde o início os
acusados e valeram-se de tudo o que
parecia ter sucedido para provar
que, nos EUA, homens brancos e ricos ainda maltratam, exploram e
violentam à vontade mulheres pobres e negras.
O quase linchamento legal dos
três estudantes sugere que, se mal
resta sombra da segregação de outrora nos Estados Unidos, o equívoco das medidas compensatórias, os
interesses criados por estas, bem como toda a filosofia que subjaz à "discriminação positiva", em vez de atenuarem as tensões decorrentes das
diferenças sociais, sexuais e raciais,
apenas concederam, invertendo-lhes o sinal, uma sobrevida aos velhos estereótipos.
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: HQ: Chargista do "Agora" lança livro hoje Índice
|