São Paulo, segunda-feira, 10 de setembro de 2007

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NELSON ASCHER

Um quase linchamento


Nos EUA, ainda há quem busca provar que brancos ricos violentam mulheres pobres e negras

HÁ CENTENAS de universidades nos EUA, inclusive a maioria das melhores, e elas não se sustentam mediante o assalto ao bolso dos contribuintes. Quem as mantém funcionando são os alunos, doações de ex-alunos, contribuições de empresas que se beneficiam de suas pesquisas e fontes similares.
Como essas verbas são finitas, cabe às universidades competirem entre si por todo centavo disponível, mostrando trabalho, atraindo bons alunos, contratando professores famosos, conquistando prêmios e medalhas, desde o Nobel aos esportivos.
A universidade Duke, em Durham, Carolina do Norte, é uma escola de médio porte, particular e de elite cujo prestígio cresceu ainda mais, na virada dos anos 80/90, quando o especialista em teoria literária Stanley Fish e outros, abraçando a ortodoxia da correção política, projetaram-lhe o nome no cenário nacional como uma das instituições firmemente associadas às concepções da história que, revisionistas e compensatórias, delegavam-lhes o papel de corrigir antigas injustiças -reais ou fictícias.
Se os eventos do último ano e meio que levaram essa instituição de ensino superior às manchetes não estavam visceralmente associados a ela, é significativo, no entanto, que tenham ocorrido em Duke. Foi lá que, em março do ano passado, eclodiu um escândalo envolvendo uma "dançarina exótica" (stripper/ escort girl), Crystal Gail Mangum, e o famoso time de lacrosse (jogo semelhante ao hóquei) da universidade. O que elevava a narrativa da trivialidade do "fait divers" à altura das dimensões simbólicas foram menos os fatos do que os participantes: ela, pobre, negra e, é óbvio, mulher; eles, homens brancos e afluentes. Com tais personagens, qualquer narrativa, nos EUA, só poderia ter um desfecho adequado: aquele no qual ela seria a vítima e eles, os culpados. Tanto faz do quê.
No caso específico era de estupro agravado. O time promovera uma festa na casa de algum(ns) de seus jogadores e contratou os serviços de duas strippers. Depois de certa confusão e bate-boca, estas deixaram a casa, e os rapazes deram a festa por encerrada. Na mesma noite, Mangum, que saíra de lá bêbada, drogada ou ambos, denunciou os jogadores. Ela foi examinada num hospital, submetida a testes de DNA etc. E é aqui que entra o verdadeiro protagonista da história, o promotor de Durham, Mike Nifong.
Ele acreditou ou fez de conta que acreditou integralmente na moça e, apesar de ela apresentar versões sucessivamente diferentes, até contraditórias, dos eventos, ele lhe tomou as dores e, ao mesmo tempo em que iniciava uma investigação agressiva e unilateral, levou logo o caso a público, de modo a obter para este o máximo de publicidade, algo que de fato conseguiu.
Quem sabe esta sua atitude tivesse algo a ver com o seguinte: seu cargo é eletivo, as eleições se aproximavam e ele estava em desvantagem. Quase metade da população da cidade é afro-americana e os brancos são em boa parte liberais. O fato é que, se bem que ele tenha ganhado a eleição, as acusações de Mangum foram se mostrando cada vez menos consistentes e os álibis dos três jogadores que acabaram sendo acusados, cada vez mais sólidos. Finalmente, os advogados destes descobriram que o promotor ocultara resultados dos testes de DNA e outras provas que contradiziam seu caso. Os jogadores foram inocentados, e Nifong não apenas afastado, como submetido a um inquérito que revogou sua licença de praticar a lei, além de condená-lo a um dia de cadeia por mentir ao tribunal.
Não obstante ter se feito justiça com os principais atores, Nifong e os jogadores, há gente cujo comportamento ficou impune: a imprensa pró-acusação, sobretudo o "New York Times" (incrivelmente ainda há no Brasil quem veja esse veículo de esquerda como porta-voz do "sistema" americano); e o Grupo dos 88, a saber, professores de Duke (quase todos das humanidades, pouquíssimos das disciplinas científicas) que, em linguagem ambígua, pré-julgaram e condenaram desde o início os acusados e valeram-se de tudo o que parecia ter sucedido para provar que, nos EUA, homens brancos e ricos ainda maltratam, exploram e violentam à vontade mulheres pobres e negras.
O quase linchamento legal dos três estudantes sugere que, se mal resta sombra da segregação de outrora nos Estados Unidos, o equívoco das medidas compensatórias, os interesses criados por estas, bem como toda a filosofia que subjaz à "discriminação positiva", em vez de atenuarem as tensões decorrentes das diferenças sociais, sexuais e raciais, apenas concederam, invertendo-lhes o sinal, uma sobrevida aos velhos estereótipos.


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