São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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ARTES PLÁSTICAS

Sob curadoria de Emanoel Araújo, instituição será inaugurada no dia 23 e ocupará pavilhão no Ibirapuera

Museu conta o Brasil sob a ótica do negro

FABIO CYPRIANO
DA REPORTAGEM LOCAL

Além do pavilhão da Bienal, da Oca e do Museu de Arte Moderna, o parque Ibirapuera acolhe um novo espaço expositivo que será inaugurado em duas semanas sob a responsabilidade de Emanoel Araújo, 63.
Responsável pelo "boom" das visitas aos museus paulista, que levou 120 mil pessoas à Pinacoteca, em 1995, número modesto perto das cifras das últimas mostras na cidade, como Picasso na Oca, que recebeu 830 mil visitantes, o curador e diretor, que terá pela primeira vez uma instituição inaugurada sob a sua completa orientação, espera criar novos paradigmas para o circuito nacional com o Museu Afro-Brasil de São Paulo.
"Vamos inaugurar um museu em processo. Modernamente, não se pensa mais em museu como obra acabada. Teremos dez meses para organizar as exposições temporárias e para conceituar os conteúdos do museu, a partir do trabalho de um grupo de sociólogos, educadores, antropólogos e historiadores. O que se terá aqui não é apenas um espaço passivo mas um instrumento de uso, da valorização da auto-estima e, mais importante, que terá a história do Brasil contada a partir da ótica do negro", diz Araújo, em meio aos 9.000 m2 do pavilhão Manoel da Nóbrega, hoje praticamente vazios, o que ecoa ainda mais as reformas em curso.
Criado por iniciativa da Prefeitura de São Paulo, o Museu Afro-Brasil será aberto com uma exposição de caráter permanente, a partir do acervo pessoal de Araújo, com cerca de 1.100 peças, cedido em comodato à Secretaria Municipal da Cultura por cinco anos. Desde o início da década de 80, o curador reúne documentos, fotos e objetos de arte sobre a história do negro no Brasil, para exposições por ele organizadas.
"Não é uma coleção de arte material extraordinária, é uma arqueologia do que foi possível nos últimos 20 anos, iniciada a partir da exposição "A Mão Afro-Brasileira", no MAM. Em cada mostra que eu organizava, sempre amealhava uma coisinha ou outra", diz o curador, com um sorriso no canto da boca.
O financiamento para a criação do museu vem da esfera federal de governo, da Petrobras, que desembolsou R$ 1,5 milhão para a reforma do prédio e outros R$ 4,5 milhões para o funcionamento dos primeiros dez meses, quando será realizado o plano de gestão do local. As obras correm em ritmo acelerado, com a abertura prevista no dia 23, uma semana antes do segundo turno das eleições, provavelmente a última inauguração importante do atual mandato de Marta Suplicy. Oportunismo eleitoral? "Não. O decreto de criação é de novembro do ano passado, estamos trabalhando dentro dos prazos previstos", afirma Araújo.
De qualquer forma, o curador alfineta o governo estadual, que havia lhe entregado o Museu do Imaginário do Povo Brasileiro, no prédio do Dops, e depois passou o espaço para a Pinacoteca. "Nunca entendi por que a Cláudia Costin [secretária estadual da Cultura] não quis executar o projeto, que chegou a ser inaugurado. Mas ele ainda vai acontecer", diz Araújo com outro sorriso.
De acordo com o curador, que não se define como diretor do museu -"isso será definido nos primeiros dez meses"-, o espaço terá três vertentes: história, memória e arte. "Aqui nos interessa desde uma pintura do século 19, realizada por Estevan Silva, que se negou a receber o segundo prêmio da Academia Imperial, em frente a dom Pedro, como uma pequena foto realizada por Militão Augusto do poeta Luis Gama, o abolicionista cujo enterro mais gente levou às ruas de São Paulo, no século 19. De certa forma, o século 19, para os negros, é a história de um fracasso", diz Araújo.
Uma de suas mais recentes aquisições, que também estará presente na mostra permanente, é um conjunto de documentos sobre os escravos do barão de São Clemente, no Rio, que continham nome, idade, valor e profissão. "Os ofícios perpassam a escravidão. Muitos escravos, ao contrário do que se pensa, exerciam funções técnicas, como marceneiros ou até mesmo passadeiros. A história é um vetor importante do museu", diz o curador.
E qual será o Rodin do Museu Afro-Brasil? "Estamos abrindo a primeira exposição temporária no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, que chama "Brasileiro, Brasileiros". Pela primeira vez, vamos mostrar o índio como formador da identidade, e não apenas como folclore. Foram os africanos que chegaram aqui e viram que os índios eram os donos da terra, pois partiam do princípio da África, segundo o qual o que valia era a ancestralidade. Assim, começamos por recontar a história do Brasil."
Já no próximo ano, o museu sediará uma mostra com caráter internacional, a partir do acervo do Museu de Etnologia de Lisboa, sobre arte africana. Seria parecida com a recente exposição vista no Centro Cultural Banco do Brasil? "Aquela é uma coleção alemã", diz, com desdém, Araújo.
Do curador, não param de jorrar planos. "Ah, vamos também ter um espaço para a arte contemporânea africana, que nunca é vista por aqui. Pretendemos ter uma importante interlocução internacional neste local", afirma Araújo.
Espaço expositivo, espaço de pesquisa, qual será o privilegiado? "O que temos de pensar sempre é o holocausto que ocorreu aqui. Enquanto o Brasil não resolve aquilo que é a chave para entender esse país, isto é, a escravidão, não temos como pensar este país no século 21. É esse o nosso eixo central", afirma o curador, agora sem o sorriso nos lábios.


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