São Paulo, quarta-feira, 10 de outubro de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Fuzilar é preciso?

A pergunta vale a todos os totalitarismos, de esquerda ou direita, que apostaram na criação da sociedade perfeita

JANTO EM Lisboa. No meio do jantar, alguém confessa certa atração por Che Guevara, um dos homens mais bonitos da história. A mesa concorda. Eu também. E depois acrescento que tanta beleza só tinha um defeito. Os fuzilamentos. "Se o Che não tivesse fuzilado tanto", afirmo, entre duas garfadas, "talvez ainda fosse mais bonito".
Escândalo entre os comensais. Che Guevara, o herói das cami- setas e da foto hagiográfica de Alberto Korda, transformado em criminoso?
Não vale a pena contar a história: qualquer criança alfabetizada sabe que a revolução cubana, ao contrário da portuguesa, não se fez com flores; fez-se com balas, execuções sumárias, campos de concentração e outros engenhos que Ernesto Guevara copiou da União Soviética e da China, dois paraísos que ele admirava com fervor. Opinião minha? Longe disso. Fatos. É o próprio Guevara quem, nos seus relatos, partilha orgulhosamente com os leitores alguns momentos de bravura: momentos em que a construção do "homem novo" em Cuba, na África, na Bolívia exigia o derramamento de sangue e a pura destruição de outras vidas. Encostar uma arma à cabeça de um ser humano indefeso e disparar sem hesitar: haverá coisa mais brava do que essa?
Eis a questão. O ponto já não está em saber se Guevara matou em abundância. O próprio confessa que sim, e a história confirma. O ponto está em saber se Guevara fez bem em matar abundantemente. A pergunta, aliás, não se limita a Che Guevara. Ela é extensível aos totalitarismos, de esquerda ou de direita, que atravessaram o século 20 e apostaram na criação de uma sociedade perfeita.
A utopia terrena desculpa tudo? Desculpa a violência e o crime? De Robespierre a Stálin, de Hitler a Mao, sem esquecer os comediantes sinistros da América Latina, como Fidel ou o próprio Guevara, cuja ferocidade horrorizava até o próprio Fidel, a resposta foi várias vezes afirmativa. Não se fazem omeletes sem quebrar alguns ovos, dizia Lenin nos seus momentos de humor.
E dizem aqueles que, mesmo sabendo dos crimes de Guevara, entendem que o propósito era nobre. Por isso, Guevara sobrevive como figura pop. Sim, o homem era bonito. E, sim, a ignorância histórica ajuda sempre à consagração dos carrascos.
Mas Guevara sobrevive porque existe ainda uma superioridade moral do comunismo sobre outras expressões totalitárias, a começar pelo fascismo e pelo nazismo. Razões? O comunismo opôs-se a ambos, apesar do pacto germano-soviético de 1939 (que Hitler esqueceu ao invadir a União Soviética, e que esqueceram os que preferem não recordar o dueto entre Stálin e o tio Adolf).
E o comunismo, ao contrário do nazismo e do fascismo, também transporta uma promessa igualitária de salvação terrena que sempre foi um ópio para intelectuais. Apesar das tragédias conhecidas.
Quarenta anos depois da morte de Guevara, a pergunta é inevitável: fuzilar é preciso? Escutando em volta as saudades pelo Santo Che, ainda existe por aí muita gente que apertava o gatilho de cabeça limpa.


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