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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Fuzilar é preciso?
A pergunta vale a todos os totalitarismos, de esquerda ou direita, que apostaram na criação da sociedade perfeita
JANTO EM Lisboa. No meio do
jantar, alguém confessa certa
atração por Che Guevara, um
dos homens mais bonitos da história. A mesa concorda. Eu também. E
depois acrescento que tanta beleza
só tinha um defeito. Os fuzilamentos. "Se o Che não tivesse fuzilado
tanto", afirmo, entre duas garfadas,
"talvez ainda fosse mais bonito".
Escândalo entre os comensais.
Che Guevara, o herói das cami-
setas e da foto hagiográfica de
Alberto Korda, transformado em
criminoso?
Não vale a pena contar a história:
qualquer criança alfabetizada sabe
que a revolução cubana, ao contrário da portuguesa, não se fez com
flores; fez-se com balas, execuções
sumárias, campos de concentração
e outros engenhos que Ernesto Guevara copiou da União Soviética e da
China, dois paraísos que ele admirava com fervor. Opinião minha? Longe disso. Fatos. É o próprio Guevara
quem, nos seus relatos, partilha orgulhosamente com os leitores alguns momentos de bravura: momentos em que a construção do "homem novo" em Cuba, na África, na
Bolívia exigia o derramamento de
sangue e a pura destruição de outras
vidas. Encostar uma arma à cabeça
de um ser humano indefeso e disparar sem hesitar: haverá coisa mais
brava do que essa?
Eis a questão. O ponto já não está
em saber se Guevara matou em
abundância. O próprio confessa que
sim, e a história confirma. O ponto
está em saber se Guevara fez bem
em matar abundantemente. A pergunta, aliás, não se limita a Che Guevara. Ela é extensível aos totalitarismos, de esquerda ou de direita, que
atravessaram o século 20 e apostaram na criação de uma sociedade
perfeita.
A utopia terrena desculpa tudo?
Desculpa a violência e o crime? De
Robespierre a Stálin, de Hitler a
Mao, sem esquecer os comediantes
sinistros da América Latina, como
Fidel ou o próprio Guevara, cuja ferocidade horrorizava até o próprio
Fidel, a resposta foi várias vezes afirmativa. Não se fazem omeletes sem
quebrar alguns ovos, dizia Lenin nos
seus momentos de humor.
E dizem aqueles que, mesmo sabendo dos crimes de Guevara, entendem que o propósito era nobre.
Por isso, Guevara sobrevive como figura pop. Sim, o homem era bonito.
E, sim, a ignorância histórica ajuda
sempre à consagração dos carrascos.
Mas Guevara sobrevive porque
existe ainda uma superioridade moral do comunismo sobre outras expressões totalitárias, a começar pelo
fascismo e pelo nazismo. Razões? O
comunismo opôs-se a ambos, apesar do pacto germano-soviético de
1939 (que Hitler esqueceu ao invadir a União Soviética, e que esqueceram os que preferem não recordar o
dueto entre Stálin e o tio Adolf).
E o comunismo, ao contrário do
nazismo e do fascismo, também
transporta uma promessa igualitária de salvação terrena que sempre
foi um ópio para intelectuais. Apesar
das tragédias conhecidas.
Quarenta anos depois da morte de
Guevara, a pergunta é inevitável: fuzilar é preciso? Escutando em volta
as saudades pelo Santo Che, ainda
existe por aí muita gente que apertava o gatilho de cabeça limpa.
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