São Paulo, quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

Fascismo é outra história

Embora Nascimento seja o protagonista da história, ele não é apresentado como herói

FASCISTA? NÃO achei nem um pouco. Se há algo a concluir de "Tropa de Elite", filme de José Padilha, é que policiais são corruptos, torturadores e assassinos; que quando querem ser honestos aderem a um grupo de psicopatas; e que os traficantes são piores ainda.
Mas cabe entrar em acordo quanto à definição do termo. "Fascista", naturalmente, não se refere ao fenômeno político de extrema-direita comum nos anos 30, que envolve uma série de características ausentes quando se emprega a palavra hoje em dia.
Penso, por exemplo, na mobilização de massas em torno de um herói providencial, empenhado em "salvar a pátria" de perigos como o comunismo e a cobiça dos banqueiros internacionais.
Classificar um filme de fascista, atualmente, significa dizer que promove a glorificação da violência, o desprezo à lei e aos direitos humanos. Para o fascista, se não houvesse as ONGs para atrapalhar, a segurança pública estaria garantida. A polícia poderia fazer o seu serviço de limpeza, matando quantos bandidos quisesse, e assim todos os cidadãos de bem poderiam viver tranqüilos.
Nesse sentido, parcela expressiva da população talvez possa ser chamada de fascista; e aqueles que, assistindo a "Tropa de Elite", aplaudem as ações do capitão Nascimento (o excelente Wagner Moura), sem dúvida merecem essa qualificação.
Fora a circunstância de que a história se passa nos morros do Rio de Janeiro, esse público tem muito mais a aplaudir em qualquer filme de tiroteio americano do que na produção de José Padilha.
A primeira metade do filme quase não tem morticínio; o que vemos, sobretudo, é um retrato circunstanciado, e quase sociológico, da corrupção policial. Os carros estão em péssimo estado; peças e motores são roubados pelos próprios membros da corporação. Os PMs matam-se uns aos outros na disputa dos pontos de arrecadação de propina. O encarregado de distribuir as folgas entre os soldados exige pagamento para ser camarada.
Quanto aos incorruptíveis, estes só poderão sentir orgulho da polícia se envergarem a farda negra, com insígnias de caveira, do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais). Há ritos sinistros no meio da mata, treinamento brutal e obsessivo, tudo aquilo que, da SS nazista aos filmes de direita americanos, todo mundo conhece bem.
Mas, num filme americano, para nada dizer da propaganda nazista, há um aspecto que "Tropa de Elite" não apresenta de jeito nenhum. É a idéia de que, "assim", as coisas se resolvem.
Com toda evidência, o filme de José Padilha não faz essa aposta. Embora o capitão Nascimento seja o protagonista da história e, portanto, tenha traços de humanidade, não é apresentado como um herói nem como um injustiçado; muito menos sua humanidade se cerca dos recursos sentimentais tão comuns em Hollywood: ninguém ameaça seu filhinho, por exemplo, nem toca na sua mulher...
Ao longo de "Tropa de Elite", inexiste aquele aprendizado do ódio ao vilão que Hollywood costuma impor à platéia. E as cenas de violência, embora causem enorme impacto, não ganham aquela volúpia de pormenores, aquela coreografia quase mística, aquela secura decisiva e irretorquível que se produz, por exemplo, nas poucas coisas de Takeshi Kitano ou de John Woo a que tive estômago de assistir.
Claro que não se trata apenas de avaliar ideologicamente o filme de José Padilha. A polêmica tem incidido neste ponto, mas envolve um julgamento estético também. A "estética" fascista depende de simplificação psicológica, concessão sentimental, rigor hierático e erotismo reprimido. Não há nada disso, nem tampouco alguma beleza em "Tropa de Elite".
A arte do filme talvez esteja escondida em coisas muito sutis: por exemplo, a circunstância de que vários horrores daquela história em particular nascem de iniciativas aparentemente inocentes, como a de oferecer óculos novos a um menino da favela... Mas aí não posso contar mais nada.
Só concluo dizendo que fascista é o filme que apresenta a violência policial como solução. "Tropa de Elite" não mostra soluções, só problemas. E estes, com certeza, são bem fascistas.


coelhofsp@uol.com.br

Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Cinema: China indica "The Knot" para concorrer ao Oscar
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.