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Réplica
Resenha expôs leitura apressada de obra
DEMÉTRIO MAGNOLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Resenhar livros dá trabalho. Demanda um tempo desproporcional ao
que se paga pela resenha, especialmente no caso inconveniente de livros extensos.
Marcelo Leite não é o único a
resolver o problema saltando a
leitura da maior parte do livro.
Mas, ao empregar o "método"
na resenha publicada na Ilustrada (26/9) de meu "Uma Gota de Sangue - História do Pensamento Racial", falseou o argumento central da obra.
Leite quer que o leitor faça
como ele, economizando tempo e reflexão. Ele decreta que o
livro é "um texto de intervenção no debate brasileiro sobre
cotas raciais" e sugere que se
salte tudo que não incide diretamente sobre o Brasil, como
as "partes três e quatro, por
exemplo".
A proposta de ignorar mais
de metade de uma obra, justamente onde se encontram, nas
palavras do resenhista, as "digressões histórico-geográficas"
(cruz, credo!) que "comprovariam a tese", é uma inovação e
tanto. Pergunto-me se ele considerou a hipótese de que a sugerida leitura produtivista deturpe a compreensão da tese.
Vítima da pressa de Leite, o
leitor da Ilustrada é levado a
imaginar que defendo uma tese
primitiva segundo a qual o
multiculturalismo não passa
de "conspiração" da Fundação
Ford (FF). Tudo o que Leite
não leu -ou leu salteadamente- constitui o desenvolvimento de tese bem distinta.
Fundamentos
Os fundamentos do que viria
a ser o multiculturalismo pós-moderno estão enraizados no
pensamento racial clássico e
encontraram expressões paradigmáticas nas formulações
dos intelectuais que moldaram
o imperialismo europeu, elaboraram a doutrina do pan-africanismo e inspiraram as leis raciais aplicadas em distintos países, ao longo de um século. Essa
é a minha tese.
A FF só entra na história
mais tarde, como um (relevante) ator político da transição
entre o universalismo da campanha pelos direitos civis de
Luther King e o racialismo da
"black politics" inaugurada por
Richard Nixon.
Proverbialmente, jornais
servem para embrulhar peixe.
Acho que não é bem assim, mas
sei reconhecer a diferença entre a função de um jornal e a de
um livro. O primeiro é um espaço adequado para a "intervenção no debate brasileiro sobre
cotas raciais" -e tenho feito isso. O segundo é apropriado para investigações de maior fôlego, devotadas a elucidar as fontes históricas de dilemas atuais.
Leite tem todo o direito de
sugerir que meu livro só serve
para embrulhar peixe -mas
uma módica honestidade intelectual o conduziria a ancorar o
diagnóstico pelo menos na exposição de indícios de inconsistência da tese realmente exposta no livro.
Só uma vez o resenhista cita
uma frase do livro ("No Brasil, a
fronteira racial não existe na
consciência das pessoas"), para
qualificá-la como "duvidosa". A
parte cinco da obra consome 80
páginas para demonstrar essa
ideia -e esclarecer o sentido
das políticas que intentam inocular a raça no imaginário brasileiro. É uma seção do livro
poupada da proposta de não
leitura de Leite. Mas ele mesmo
a leu distraído.
Um pouco de atenção lhe
permitiria saber que interpreto
as políticas de cotas raciais como um (importante) fenômeno
superficial, sob o qual se oculta
o projeto de uma revisão racial
da história e da identidade do
Brasil. Os leitores da resenha ficaram privados também dessa
informação crucial.
DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em
geografia humana pela USP.
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