São Paulo, sábado, 10 de outubro de 2009

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Réplica

Resenha expôs leitura apressada de obra

DEMÉTRIO MAGNOLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Resenhar livros dá trabalho. Demanda um tempo desproporcional ao que se paga pela resenha, especialmente no caso inconveniente de livros extensos. Marcelo Leite não é o único a resolver o problema saltando a leitura da maior parte do livro.
Mas, ao empregar o "método" na resenha publicada na Ilustrada (26/9) de meu "Uma Gota de Sangue - História do Pensamento Racial", falseou o argumento central da obra. Leite quer que o leitor faça como ele, economizando tempo e reflexão. Ele decreta que o livro é "um texto de intervenção no debate brasileiro sobre cotas raciais" e sugere que se salte tudo que não incide diretamente sobre o Brasil, como as "partes três e quatro, por exemplo".
A proposta de ignorar mais de metade de uma obra, justamente onde se encontram, nas palavras do resenhista, as "digressões histórico-geográficas" (cruz, credo!) que "comprovariam a tese", é uma inovação e tanto. Pergunto-me se ele considerou a hipótese de que a sugerida leitura produtivista deturpe a compreensão da tese.
Vítima da pressa de Leite, o leitor da Ilustrada é levado a imaginar que defendo uma tese primitiva segundo a qual o multiculturalismo não passa de "conspiração" da Fundação Ford (FF). Tudo o que Leite não leu -ou leu salteadamente- constitui o desenvolvimento de tese bem distinta.

Fundamentos
Os fundamentos do que viria a ser o multiculturalismo pós-moderno estão enraizados no pensamento racial clássico e encontraram expressões paradigmáticas nas formulações dos intelectuais que moldaram o imperialismo europeu, elaboraram a doutrina do pan-africanismo e inspiraram as leis raciais aplicadas em distintos países, ao longo de um século. Essa é a minha tese.
A FF só entra na história mais tarde, como um (relevante) ator político da transição entre o universalismo da campanha pelos direitos civis de Luther King e o racialismo da "black politics" inaugurada por Richard Nixon.
Proverbialmente, jornais servem para embrulhar peixe. Acho que não é bem assim, mas sei reconhecer a diferença entre a função de um jornal e a de um livro. O primeiro é um espaço adequado para a "intervenção no debate brasileiro sobre cotas raciais" -e tenho feito isso. O segundo é apropriado para investigações de maior fôlego, devotadas a elucidar as fontes históricas de dilemas atuais.
Leite tem todo o direito de sugerir que meu livro só serve para embrulhar peixe -mas uma módica honestidade intelectual o conduziria a ancorar o diagnóstico pelo menos na exposição de indícios de inconsistência da tese realmente exposta no livro.
Só uma vez o resenhista cita uma frase do livro ("No Brasil, a fronteira racial não existe na consciência das pessoas"), para qualificá-la como "duvidosa". A parte cinco da obra consome 80 páginas para demonstrar essa ideia -e esclarecer o sentido das políticas que intentam inocular a raça no imaginário brasileiro. É uma seção do livro poupada da proposta de não leitura de Leite. Mas ele mesmo a leu distraído.
Um pouco de atenção lhe permitiria saber que interpreto as políticas de cotas raciais como um (importante) fenômeno superficial, sob o qual se oculta o projeto de uma revisão racial da história e da identidade do Brasil. Os leitores da resenha ficaram privados também dessa informação crucial.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.



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