São Paulo, quarta-feira, 10 de novembro de 2004

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Retrato do artista quando coisa

Tuca Vieira/Folha Imagem
O poeta Manoel de Barros, que lança o livro "Poemas Rupestres", em um hotel em São Paulo


Manoel de Barros fala do novo livro, "Poemas Rupestres", e reafirma a primazia da palavra sobre o pensamento

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Desta vez, a montanha veio a Maomé. O poeta Manoel de Barros, 87, que vive entre Campo Grande e sua fazenda em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, é avesso a entrevistas. Concedeu poucas, a maioria por fax, dando a ele a chance de escolher as perguntas e burilar as respostas.
Daí considerar-se imperdível o convite do poeta para uma entrevista em seu apartamento no Rio, onde ele passa alguns meses por ano. Passagem na mão, deu-se a reviravolta. Manoel viria a São Paulo participar de premiação literária da Portugal Telecom, ontem à noite, da qual é um dos finalistas com o livro "Memórias Inventadas: A Infância" (Planeta).
O vate do chão, do traste, das coisas miúdas, hospeda-se num hotel grandioso e impessoal. Pequeno e frágil, parece engolfado pela imensidade do vestíbulo. Olhando em torno, confessa: "Não tenho nenhuma aptidão para falar disso aqui". Ali não é seu mundo. Mas, ao descrever sua poética e seu pensamento, por vezes ensimesmado, por vezes alteando a voz, em súbita animação, logra evocar a força das minudências. Torna-se a montanha. Posto que ínfima.
Com mais de 20 livros publicados, Manoel pode ser considerado um dos dois grandes poetas da geração modernista de 1945. O outro é João Cabral de Melo Neto. Elogios abundam. De Millôr Fernandes: "[Sua obra] É única, inaugural, apogeu do chão". De João Antônio: "Tem a força de um estampido em surdina".
Manoel discorreu com exclusividade à Folha sobre infância, arte e política. "Não sei explicar, mas desexplicar", explica. Quando sua mulher Stella foi recebê-lo no quarto, perguntou ao repórter: "Conseguiu arrancar alguma coisa dele?". Diante da resposta afirmativa, espantou-se, desconfiada. Melhor desconversar.
 

Folha - Por que essa relutância em dar entrevistas ao vivo?
Manoel de Barros -
A palavra oral não dá rascunho. Como não tenho a possibilidade de corrigir os erros cometidos na fala, fico descompensado. Dá-me a dor do erro, que advém do orgulho de querer falar apenas coisa que preste.

Folha - O sr. é perfeccionista?
Manoel -
Procuro burilar ao máximo o ritmo, a harmonia, mas em certa hora é preciso parar. É forçoso pôr um ponto final.

Folha - Paul Valéry também se angustiava quando tinha de enviar o livro para a editora.
Manoel -
Sim, e Flaubert, grandes estilistas da língua francesa, importantes na minha formação.

Folha - O sr. acredita no destino?
Manoel -
Creio nas coincidências.

Folha - Embora Freud afirme que não haja coincidências...
Manoel -
Os lacanistas dizem que sou um prato cheio para eles, pois tudo o que se esconde aparece no que se inventa. Como poeta, sou apenas o inventor.

Folha - No início da carreira, o sr. disse ter ficado "desonrado" com a pouca repercussão de seus livros.
Manoel -
Sou tímido. Em Campo Grande, dizem que sou sujeito intratável. Ora, não me agrada dar entrevistas, mas gosto muito de gente, de conversar. Também havia o fato de que, após ter lançado meus primeiros livros, tinha medo de a crítica falar mal de mim. Meu pai tinha uma fazenda no Pantanal, para onde eu fugia.

Folha - Hoje o sr. é considerado um grande poeta.
Manoel -
Não passo de um bugre civilizado. Não sou convencido de minha obra. Nem sei se ela é definitiva, se vai ficar ou não. Tenho muitas dúvidas. Escrevo porque sou obcecado pela palavra, tenho uma espécie de tara por ela. E acredito no trabalho, não na inspiração. O belo é feito por meio do trabalho. A arte da poesia é o trabalho com a palavra.

Folha - O senhor fala com modéstia. Mas, em sua obra, defende uma poética bastante rigorosa.
Manoel -
Estudei muito também os lingüistas, como Sapir. Para mim, a poesia é um fenômeno de linguagem, não de idéias. O que faço é obedecer à minha linguagem. Agora, não sou um homem de razão, mas da sensibilidade. O poeta é um sujeito que não sabe das coisas. Não sei explicar, mas desexplicar.

Folha - A romancista portuguesa Agustina Bessa-Luís observou, quando esteve no Brasil, que a poesia não tem pensamento.
Manoel -
Segundo Valéry, a poesia é o pensar por imagens. No colégio, um professor de filosofia perguntou-me o que é metafísica. Respondi que é uma bobagem profunda! A mim nunca me impressionou a filosofia. Entusiasmava-me mesmo a palavra.

Folha - O senhor diz que ao poeta não interessa a verdade, mas a verossimilhança, um conceito aristotélico igualmente ligado às artes dramáticas. Poderíamos pensar na sua poesia como uma encenação das coisas miúdas?
Manoel -
Moleque em Corumbá, era fascinado pelos palhaços dos circos mambembes. Tive a intuição de que o ser teatral é o outro, o heterônimo, na acepção de Fernando Pessoa. Diferente do homem humano. Senti a diferença que havia entre arte e realidade.

Folha - A sua poesia está sempre calcada em experiências de sua infância. Por quê?
Manoel -
Gaston Bachelard disse que a infância é como um bauzinho, onde se guardam as primeiras impressões recebidas do mundo. Depois, buscamos no baú os primeiros cheiros, emanações, cores de uma época em que ainda não tínhamos a voz. Infância, etimologicamente, é ausência de voz. Ao procurar na palavra o encantamento, o poeta é obrigado a buscar a sua fonte, que está na infância. Minha obra é construída pelo que fui e recebi na infância.

Folha - Na sua juventude, o senhor viajou para a Bolívia e os EUA.
Manoel -
Sempre tive fascínio por conhecer as coisas ditas primitivas, que satisfiz de certo modo quando convivi com os índios peruanos e bolivianos. Em seguida, fiquei um ano em Nova York. Foi um choque cultural. Passei do índio para Picasso.

Folha - O sr. estudou por lá, não?
Manoel -
Como ouvinte, estudei cinema e pintura no Museu de Arte Moderna. Fui um grande cinéfilo. Assisti a todos os filmes de Fellini, de Antonioni, de Truffaut. Havia um bairro onde passavam fitas do mundo inteiro. Vi filmes iranianos há mais de 60 anos, quando ainda não estavam na moda. Meu cineasta favorito continua sendo Luis Buñuel.

Folha - Sua poesia é muito voltada para a visão.
Manoel -
Sim. Para todos os sentidos, mas o principal é o da visão. Sou um voyeur. O olho me comanda.

Folha - O senhor também foi militante do partido comunista.
Manoel -
Não diria militante, mas simpatizante. Foi o Carlos Lacerda que me botou na Juventude Comunista.

Folha - Qual sua posição política hoje?
Manoel -
E alguém tem posição política no Brasil? Sempre fui um homem de esquerda. Ando bastante desencantado, embora não descrente. Para falar com sinceridade, acreditava no PT, mas entendo pouco os caminhos do atual governo. Não sou economista, rapaz, sou ignorante nessa área. Agora, como poeta...

Folha - Não pode compactuar com essa situação...
Manoel -
Não posso mesmo. Não tenho muitas certezas. Quem as tem? Nem o Lula, que não é bobo. Inclusive, o mundo hoje está muito complicado.


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