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Retrato do artista quando coisa
Tuca Vieira/Folha Imagem
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O poeta Manoel de Barros, que lança o livro "Poemas Rupestres", em um hotel em São Paulo |
Manoel de Barros fala do novo livro, "Poemas Rupestres", e reafirma a primazia da palavra sobre o pensamento
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Desta vez, a montanha veio a
Maomé. O poeta Manoel de Barros, 87, que vive entre Campo
Grande e sua fazenda em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, é avesso a entrevistas. Concedeu poucas, a maioria por fax, dando a ele
a chance de escolher as perguntas
e burilar as respostas.
Daí considerar-se imperdível o
convite do poeta para uma entrevista em seu apartamento no Rio,
onde ele passa alguns meses por
ano. Passagem na mão, deu-se a
reviravolta. Manoel viria a São
Paulo participar de premiação literária da Portugal Telecom, ontem à noite, da qual é um dos finalistas com o livro "Memórias Inventadas: A Infância" (Planeta).
O vate do chão, do traste, das
coisas miúdas, hospeda-se num
hotel grandioso e impessoal. Pequeno e frágil, parece engolfado
pela imensidade do vestíbulo.
Olhando em torno, confessa:
"Não tenho nenhuma aptidão para falar disso aqui". Ali não é seu
mundo. Mas, ao descrever sua
poética e seu pensamento, por vezes ensimesmado, por vezes alteando a voz, em súbita animação, logra evocar a força das minudências. Torna-se a montanha.
Posto que ínfima.
Com mais de 20 livros publicados, Manoel pode ser considerado um dos dois grandes poetas da
geração modernista de 1945. O
outro é João Cabral de Melo Neto.
Elogios abundam. De Millôr Fernandes: "[Sua obra] É única,
inaugural, apogeu do chão". De
João Antônio: "Tem a força de um
estampido em surdina".
Manoel discorreu com exclusividade à Folha sobre infância, arte e política. "Não sei explicar,
mas desexplicar", explica. Quando sua mulher Stella foi recebê-lo
no quarto, perguntou ao repórter:
"Conseguiu arrancar alguma coisa dele?". Diante da resposta afirmativa, espantou-se, desconfiada.
Melhor desconversar.
Folha - Por que essa relutância
em dar entrevistas ao vivo?
Manoel de Barros - A palavra oral
não dá rascunho. Como não tenho a possibilidade de corrigir os
erros cometidos na fala, fico descompensado. Dá-me a dor do erro, que advém do orgulho de querer falar apenas coisa que preste.
Folha - O sr. é perfeccionista?
Manoel - Procuro burilar ao máximo o ritmo, a harmonia, mas
em certa hora é preciso parar. É
forçoso pôr um ponto final.
Folha - Paul Valéry também se
angustiava quando tinha de enviar
o livro para a editora.
Manoel - Sim, e Flaubert, grandes estilistas da língua francesa,
importantes na minha formação.
Folha - O sr. acredita no destino?
Manoel - Creio nas coincidências.
Folha - Embora Freud afirme que
não haja coincidências...
Manoel - Os lacanistas dizem
que sou um prato cheio para eles,
pois tudo o que se esconde aparece no que se inventa. Como poeta,
sou apenas o inventor.
Folha - No início da carreira, o sr.
disse ter ficado "desonrado" com a
pouca repercussão de seus livros.
Manoel - Sou tímido. Em Campo
Grande, dizem que sou sujeito intratável. Ora, não me agrada dar
entrevistas, mas gosto muito de
gente, de conversar. Também havia o fato de que, após ter lançado
meus primeiros livros, tinha medo de a crítica falar mal de mim.
Meu pai tinha uma fazenda no
Pantanal, para onde eu fugia.
Folha - Hoje o sr. é considerado
um grande poeta.
Manoel - Não passo de um bugre
civilizado. Não sou convencido de
minha obra. Nem sei se ela é definitiva, se vai ficar ou não. Tenho
muitas dúvidas. Escrevo porque
sou obcecado pela palavra, tenho
uma espécie de tara por ela. E
acredito no trabalho, não na inspiração. O belo é feito por meio do
trabalho. A arte da poesia é o trabalho com a palavra.
Folha - O senhor fala com modéstia. Mas, em sua obra, defende uma
poética bastante rigorosa.
Manoel - Estudei muito também
os lingüistas, como Sapir. Para
mim, a poesia é um fenômeno de
linguagem, não de idéias. O que
faço é obedecer à minha linguagem. Agora, não sou um homem
de razão, mas da sensibilidade. O
poeta é um sujeito que não sabe
das coisas. Não sei explicar, mas
desexplicar.
Folha - A romancista portuguesa
Agustina Bessa-Luís observou,
quando esteve no Brasil, que a poesia não tem pensamento.
Manoel - Segundo Valéry, a poesia é o pensar por imagens. No colégio, um professor de filosofia
perguntou-me o que é metafísica.
Respondi que é uma bobagem
profunda! A mim nunca me impressionou a filosofia. Entusiasmava-me mesmo a palavra.
Folha - O senhor diz que ao poeta
não interessa a verdade, mas a verossimilhança, um conceito aristotélico igualmente ligado às artes
dramáticas. Poderíamos pensar na
sua poesia como uma encenação
das coisas miúdas?
Manoel - Moleque em Corumbá,
era fascinado pelos palhaços dos
circos mambembes. Tive a intuição de que o ser teatral é o outro, o
heterônimo, na acepção de Fernando Pessoa. Diferente do homem humano. Senti a diferença
que havia entre arte e realidade.
Folha - A sua poesia está sempre
calcada em experiências de sua infância. Por quê?
Manoel - Gaston Bachelard disse
que a infância é como um bauzinho, onde se guardam as primeiras impressões recebidas do mundo. Depois, buscamos no baú os
primeiros cheiros, emanações,
cores de uma época em que ainda
não tínhamos a voz. Infância, etimologicamente, é ausência de
voz. Ao procurar na palavra o encantamento, o poeta é obrigado a
buscar a sua fonte, que está na infância. Minha obra é construída
pelo que fui e recebi na infância.
Folha - Na sua juventude, o senhor viajou para a Bolívia e os EUA.
Manoel - Sempre tive fascínio
por conhecer as coisas ditas primitivas, que satisfiz de certo modo quando convivi com os índios
peruanos e bolivianos. Em seguida, fiquei um ano em Nova York.
Foi um choque cultural. Passei do
índio para Picasso.
Folha - O sr. estudou por lá, não?
Manoel - Como ouvinte, estudei
cinema e pintura no Museu de
Arte Moderna. Fui um grande cinéfilo. Assisti a todos os filmes de
Fellini, de Antonioni, de Truffaut.
Havia um bairro onde passavam
fitas do mundo inteiro. Vi filmes
iranianos há mais de 60 anos,
quando ainda não estavam na
moda. Meu cineasta favorito continua sendo Luis Buñuel.
Folha - Sua poesia é muito voltada para a visão.
Manoel - Sim. Para todos os sentidos, mas o principal é o da visão.
Sou um voyeur. O olho me comanda.
Folha - O senhor também foi militante do partido comunista.
Manoel - Não diria militante,
mas simpatizante. Foi o Carlos
Lacerda que me botou na Juventude Comunista.
Folha - Qual sua posição política
hoje?
Manoel - E alguém tem posição
política no Brasil? Sempre fui um
homem de esquerda. Ando bastante desencantado, embora não
descrente. Para falar com sinceridade, acreditava no PT, mas entendo pouco os caminhos do
atual governo. Não sou economista, rapaz, sou ignorante nessa
área. Agora, como poeta...
Folha - Não pode compactuar
com essa situação...
Manoel - Não posso mesmo.
Não tenho muitas certezas. Quem
as tem? Nem o Lula, que não é bobo. Inclusive, o mundo hoje está
muito complicado.
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