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Crítica/"Uma Questão de Loucura"
Kadaré exibe decadência dos Bálcãs
No minirromance "Uma Questão de Loucura", albanês mostra descompasso entre passado grandioso e presente crítico
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
N
esta pequena história
de cunho autobiográfico, o escritor albanês
Ismail Kadaré retoma alguns
de seus temas prediletos, como
a morte, a Segunda Guerra
Mundial e a ditadura comunista instalada após a expulsão dos
alemães.
O autor parece ultimamente
disposto a ir direto, com um
mínimo de referências e digressões, ao assunto a ser narrado.
Aqui ele trata sobretudo da decadência das antigas instituições de seu país diante da ascensão da ditadura de embasamento soviético.
A história é contada do ponto
de vista naturalmente limitado
de um garoto (o próprio Kadaré, quando menino). A ausência
de um contexto mais amplo
transforma a obra em uma espécie de conto alongado, ou como classifica o autor, um minirromance.
Kadaré descobre, na própria
família, tanto os sinais da decadência social quanto as sementes da ascensão política. O avô
materno do garoto, ingenuamente associado por ele ao fundador do Estado albanês, é um
antigo proprietário de terras
que mantém os costumes associados à velha ordem.
Ele ainda fuma seus cachimbos na espreguiçadeira de sua
varanda; lê livros em turco,
conserva por perto os ciganos
que lhe tocam violino ao cair da
tarde. Esses hábitos são censurados pelos tios do menino,
membros do partido que viria a
governar o país por cerca de 40
anos.
Mudanças
Para o garoto, é difícil entender as sutilezas da mudança.
Por que o avô, supostamente o
libertador da nação albanesa, lê
livros na língua do antigo
opressor? Por que, de início, os
membros do partido permanecem na clandestinidade? Esta
última circunstância ainda empresta à pequena Girokastra,
onde Kadaré nasceu, uma dualidade peculiar. Assim, uma loja
ou um cabeleireiro pode abrigar um escritório do partido.
Ou seja, sob a fachada de algo se
ocultam realidades diversas.
A brincadeira favorita do pequeno Kadaré é construir um
cavalo de Tróia, no interior do
qual pretende dissimular-se. A
referência homérica é freqüente nas obras do autor. A comparação extemporânea suscita a
idéia de descompasso entre
grandezas pretéritas e um presente aviltado.
Além disso, trata-se de um
presente que tenta eliminar
qualquer aliança com os tempos idos. No lugar do ensino do
grego e do latim, introduz-se o
russo nas escolas. Os professores das antigas línguas são humilhados e surrados.
Após a morte do avô, o menino encontra o tio sentado na espreguiçadeira do patriarca. Ele
lê um livro em húngaro, idioma
que mal compreende. Enfim o
jovem Kadaré logra traçar uma
semelhança entre ambos. Tal
como o avô, o tio pretenderia
ler livros cujo significado lhe
escapa. Ocorre-lhe que "naquela espreguiçadeira só se podia
ler livros sem sentido". A Albânia seria a pátria da loucura.
UMA QUESTÃO DE LOUCURA
Autor: Ismail Kadaré
Tradução: Bernardo Joffily
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28 (74 págs.)
Avaliação: bom
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