São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2007

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Crítica/"Uma Questão de Loucura"

Kadaré exibe decadência dos Bálcãs

No minirromance "Uma Questão de Loucura", albanês mostra descompasso entre passado grandioso e presente crítico

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

N esta pequena história de cunho autobiográfico, o escritor albanês Ismail Kadaré retoma alguns de seus temas prediletos, como a morte, a Segunda Guerra Mundial e a ditadura comunista instalada após a expulsão dos alemães.
O autor parece ultimamente disposto a ir direto, com um mínimo de referências e digressões, ao assunto a ser narrado. Aqui ele trata sobretudo da decadência das antigas instituições de seu país diante da ascensão da ditadura de embasamento soviético. A história é contada do ponto de vista naturalmente limitado de um garoto (o próprio Kadaré, quando menino). A ausência de um contexto mais amplo transforma a obra em uma espécie de conto alongado, ou como classifica o autor, um minirromance.
Kadaré descobre, na própria família, tanto os sinais da decadência social quanto as sementes da ascensão política. O avô materno do garoto, ingenuamente associado por ele ao fundador do Estado albanês, é um antigo proprietário de terras que mantém os costumes associados à velha ordem. Ele ainda fuma seus cachimbos na espreguiçadeira de sua varanda; lê livros em turco, conserva por perto os ciganos que lhe tocam violino ao cair da tarde. Esses hábitos são censurados pelos tios do menino, membros do partido que viria a governar o país por cerca de 40 anos.

Mudanças
Para o garoto, é difícil entender as sutilezas da mudança. Por que o avô, supostamente o libertador da nação albanesa, lê livros na língua do antigo opressor? Por que, de início, os membros do partido permanecem na clandestinidade? Esta última circunstância ainda empresta à pequena Girokastra, onde Kadaré nasceu, uma dualidade peculiar. Assim, uma loja ou um cabeleireiro pode abrigar um escritório do partido.
Ou seja, sob a fachada de algo se ocultam realidades diversas. A brincadeira favorita do pequeno Kadaré é construir um cavalo de Tróia, no interior do qual pretende dissimular-se. A referência homérica é freqüente nas obras do autor. A comparação extemporânea suscita a idéia de descompasso entre grandezas pretéritas e um presente aviltado.
Além disso, trata-se de um presente que tenta eliminar qualquer aliança com os tempos idos. No lugar do ensino do grego e do latim, introduz-se o russo nas escolas. Os professores das antigas línguas são humilhados e surrados. Após a morte do avô, o menino encontra o tio sentado na espreguiçadeira do patriarca. Ele lê um livro em húngaro, idioma que mal compreende. Enfim o jovem Kadaré logra traçar uma semelhança entre ambos. Tal como o avô, o tio pretenderia ler livros cujo significado lhe escapa. Ocorre-lhe que "naquela espreguiçadeira só se podia ler livros sem sentido". A Albânia seria a pátria da loucura.


UMA QUESTÃO DE LOUCURA
Autor:
Ismail Kadaré
Tradução: Bernardo Joffily
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28 (74 págs.)
Avaliação: bom



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