|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
crítica
Autor de talento, Adiga faz "cria monstruosa"
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Imagine um país onde os
ricos dirijam bêbados
pelas avenidas da capital. Imagine que quando
aconteça de atropelarem as
crianças que vivem de esmolas nas ruas, os pais nem pensem em denunciar o crime,
pois sabem que a polícia prefere queimar o arquivo vivo a
prender o assassino. Ou imagine que a denúncia seja feita
afinal, e que o rico acusado
imediatamente obrigue um
empregado -o motorista,
por exemplo-, a assumir o
crime e a cumprir a pena em
seu lugar. Imagine que o motorista que resistir à imputação tenha a família massacrada. Imagine que o motorista se sinta grato pela chance de fazer bem ao patrão.
Imagine um país onde os
professores não apenas não
ensinem seus alunos, mas
ainda roubem as suas merendas, por jamais receber o
salário. Um país onde os proprietários estuprem as filhas
dos miseráveis que vivem em
suas terras e ainda carreguem seus filhos para trabalhar de graça em seus negócios. Onde nenhuma doença
de pobre tenha cura, pois não
há médicos ou equipamentos nos hospitais públicos,
embora haja médicos recebendo pelo trabalho não realizado. Imagine tuberculosos
cuspindo sangue até morrer
em corredores cobertos de
jornais e de estrumes de animais. Imagine lavar o chão
salpicado com o sangue do
pai morto, sem atendimento,
num desses hospitais.
Imagine uma multidão de
gente vivendo às margens de
um rio fedorento e poluído
de fezes, resíduos tóxicos e
corpos de defuntos mal queimados. Imagine condomínios com torres de apartamentos luxuosos para cima e
porões sujos abarrotados de
empregados para baixo, sempre disponíveis ao menor capricho dos patrões. Imagine
morar num cubículo desse
porão, disputando lugares
com baratas e lagartixas.
Para queimar etapas, imagine um país onde o governo
se apresentasse como enérgico defensor da democracia
e até do socialismo. Que a levassem a tal ponto de acabamento e esplendor que nenhuma polícia secreta ou
exército nas ruas fossem necessários para conter as rebeliões, pois elas simplesmente não existiriam. Imagine um governo absolutamente certo de suas convicções autênticas e leais ao povo, de modo que, em cada um
de seus atos, já estejam embutidas generosas razões políticas, graves justificativas
religiosas e alegres propinas
cívicas. Até aí, admita que
não estou pedindo demais à
sua imaginação.
Efeito cru
Imagine, entretanto, uma
narrativa no qual o leitor se
visse rindo a contragosto, e
até gargalhando, página após
página, enquanto as cenas de
um país exatamente assim se
descobrissem nas suas páginas. Nesse caso, admita também, a obra em questão não é
trivial. Requer-se química fina para se obter efeito tão
cru e paradoxal. Imagine então que, de um romance naturalista pesadão, ela extraísse uma novela picaresca.
Ou, noutra hipótese, igualmente antitética e indigesta,
que um "bildungroman" cruzasse com um panfleto político-satírico do século 18,
cheio de veneno nonsense. O
talentoso pai dessa cria
monstruosa intitulada "O Tigre Branco" responde pelo
nome de Aravind Adiga. Que
seja autor indiano, esteja por
volta dos 35 anos, viva em
Bombaim e tenha vencido o
Booker Prize de 2008 são informações pelas quais não
ponho a mão no fogo.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Unicamp e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp)
O TIGRE BRANCO
Autor: Aravind Adiga
Tradução: Maria Helena Rouanet
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 34,90 (256 págs.)
Avaliação: bom
Texto Anterior: Frase Próximo Texto: Lenny e Osklen salvam Claro Rio Summer do naufrágio Índice
|