São Paulo, quarta-feira, 10 de novembro de 2010

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MARCELO COELHO

Criadores e criaturas


Curioso que a imagem de Dilma oscile de "afilhada" sem personalidade a chefe "sem jogo de cintura"


VIVEMOS MEIO obcecados com a hereditariedade hoje em dia. Quem tem filhos pequenos corre o risco de tornar-se especialista nesse tipo de coisa.
Joãozinho não para quieto, não se concentra na lição de casa, são onze da noite e ele pula na cama como um possesso.
"Ah, já vi tudo", diz a mãe num suspiro exausto. "Ele puxou ao tio Quincas..."
Era um sujeito que foi expulso do colégio aos 12 anos para nunca mais voltar, nunca ficou mais de três meses num emprego e terminou seus dias num acidente de motocicleta.
Já a Talita, por sua vez, não desgruda do espelho, esperneia se não comprarem o tamanquinho de salto da Barbie e é uma fofoqueira prodigiosa na salinha do maternal.
O pai observa as evidências num misto de rancor e desconsolo. Volta-se para a mulher com neutralidades venenosas: "Não sei não, ela leva o jeito de ficar igualzinha àquela sua prima, a Amanda...".
Júnior é rabugento e pouco sociável. A genética não engana: trata-se do avô, tal e qual, só que de tênis, bermuda e boné.
Tanto fatalismo familiar tende a tornar-se, claro, uma profecia que se autorrealiza; colado o rótulo, oferecido o modelo, fica mais difícil que a criança se afaste da herança que lhe foi atribuída.
Penso em outro argumento, todavia, para contestar esse tipo de investigação sobre a origem dos defeitos das crianças.
A genética pode ter parte, claro. Mas acredito que será sempre facílimo reconhecer num menino ou menina de cinco anos as falhas de caráter que qualquer adulto possui.
Gula, inveja, fofoca, vaidade, incapacidade de aceitar frustrações, agitação ou preguiça aparecem com transparência total em qualquer criança pequena.
Talvez a lista dos culpados de sempre -o tio Quincas, a prima perua, o avô ranzinza- seja simplesmente composta de adultos que, por alguma razão, não souberam se livrar dos defeitos que tiveram durante a própria infância.
Não são os ancestrais do monstrinho de hoje. São simplesmente os monstrinhos de anteontem que não conseguiram evoluir para um estágio mais dissimulado, mais contido, mais civil e suportável.
A velha frase segundo a qual "a criança é o pai do homem" mereceria, desse modo, uma leitura menos determinista. Ao mesmo tempo em que se discutem como nunca os métodos na educação dos filhos, fala-se tanto em genética e hereditariedade que o poder do ambiente social, das influências e circunstâncias acaba sendo desconsiderado.
Tomo um ou dois exemplos da política sem mudar muito de assunto. Virou clichê, por exemplo, falar do "DNA stalinista" deste ou daquele dirigente do PT. O DNA os ajuda, certamente, quando usam argumentos de esquerda para desqualificar seus críticos.
Mas não me consta que esse mesmo DNA tenha perturbado, por exemplo, as relações de José Dirceu com o megamilionário Carlos Slim, dono de um império de comunicações que o faz o homem mais rico do mundo em alguma dessas listas que se publicam por aí.
Lembro ainda o velho Marx, que no seu "O Dezoito Brumário" dizia que, conforme mudavam as alíquotas dos impostos sobre o vinho, os viticultores degustavam o buquê de cada ministério.
Não é difícil apreciar o buquê dos novos eleitos, seja qual for o seu DNA leninista ou popular. Empreiteiras e bancos financiaram largamente as campanhas de todo político que importa no Brasil.
Uma charge publicada nessa segunda-feira mostrava Lula comovido, como um pai coruja, diante dos primeiros voos de autonomia protagonizados por Dilma Rousseff: "Eles crescem tão rápido", babava-se o criador diante de sua criatura. Curioso que a imagem de Dilma oscile entre a de uma "afilhada" sem personalidade e a de uma chefona autoritária e "sem jogo de cintura".
Debutante ou madrasta? Talvez as duas coisas e muitas outras. Para seu marqueteiro, João Santana, falta no imaginário brasileiro o lugar da "rainha", só ocupado, segundo disse em entrevista à Folha no domingo, pela Princesa Isabel.
Eis Lula no lugar de D. Pedro 2º. Bom argumento, em todo caso, para se desconfiar mais do que nunca de DNAs e leis da hereditariedade.

coelhofsp@uol.com.br


AMANHÃ NA ILUSTRADA: Contardo Calligaris



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